Tesouros Inesperados na Bíblia da minha Mãe…

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Apesar de termos inúmeras estantes e armários para guardar nossos livros e papeis, ainda falta espaço para arquivar tudo o que possuímos. Na área de serviço temos pilhas de caixas com cartas, objetos e documentos do passado. Já que estamos pretendendo encontrar um lugar menor para morar, peguei duas delas para ver se eliminava parte do seu conteúdo. A primeira contém uma pequena parte do arquivo vertical que montamos no passado—está cheia de pastas sobre uma série de assuntos teológicos, sociais, históricos…

Mostrei-a a meu marido que, após passar meia hora fascinado com o conteúdo de apenas uma única pasta, declarou que não queria se desfazer de qualquer outra na caixa! Depois, fui eu mesma que decretei que a outra também não tinha nada descartável. Resultado do dia—duas caixas ainda cheias! Portanto, nenhum progresso aparente…

A segunda caixa contém objetos ligados aos meus pais. Alguns me foram dados por meu pai após a morte da minha mãe em 1988. Outros foram trazidos por nossa filha depois do enterro do meu pai, já que eu não pude viajar para o Canadá por estar doente na época. Não foi possível minha participação no encontro de filhos e alguns netos quando eles foram até o apartamento dele para dividir e direcionar os seus pertences.

Nesta caixa tem um saco de plástico com centenas de fotos. Enquanto, naquele dia, os pais se ocupavam com os objetos, os netos presentes desmontaram dezenas de álbuns fotográficos. Assim a nossa Grace trouxe todas as fotos que me retratam como criança e jovem, mais aquelas que mandei para que eles pudessem participar da nossa vida aqui no Brasil. Vieram também as cartas que escrevi para eles. Minha mãe guardava todas e as relia de vez em quando, e meu pai deu continuidade ao hábito.

No meio de tudo isso há quatro Bíblias —uma da minha mãe, uma de Opoe, a minha avó (que meu pai recebeu quando os pertences dela foram divididos), e duas do meu pai. Tirei cada uma do saco plástico protetor e olhei-as novamente. Hoje quero compartilhar apenas sobre aquilo que encontrei dentro da Bíblia da minha mãe.

Na capa encontra-se colada uma lista de dicas onde procurar apoio quando estiver com medo, numa crise, com dúvida, precisando de conforto, etc. Tem também uma folha com uma promessa de Deus para cada mês de 1985. Vários pedaços de papel, a maioria com a letra do meu pai, estão inseridos nas páginas. Existem também algumas anotações dele junto a certos textos. Relendo-os, penetrei por um instante na saudade e na solidão do meu pai durante os quinze longos anos que ele ainda permaneceu na terra sem ela (1988-2002). Sendo a morte dele súbita, não creio que ele pretendesse que estes pensamentos fossem compartilhados com alguém. Mas vou copiar alguns aqui—como testemunho do amor dos dois e a importância da sua fé.

Após o falecimento de mãe (que ele chamava de Ma ou Mommy), Pai se apegou à Bíblia dela. Apesar dos holandeses da nossa igreja não terem o costume de marcarem as suas Bíblias (achavam isso uma profanação), ela havia começado a fazer isto nos últimos anos de vida. São pequenas marquinhas para mostrar que ela leu este ou aquele capítulo e algumas marcas maiores nas passagens que ela gostava.

Mas, debaixo do Salmo 116, foi ele que tomou a caneta na mão e escreveu. Estava com Ma no hospital quando, em 1987, as enfermeiras vieram e nos disseram que Ma teria que ser operada em poucas horas. Ma sorriu e disse para mim—Temos que cantar “God heb ik lief (amo a Deus)”—Salmo 116.1 do saltério holandês. Nestas poucas palavras, registradas numa hora de saudade, meu pai encontrava conforto na fé que ela demonstrou naquela hora—uma fé que a levou a querer cantar “Amo ao Senhor” no momento em que a morte parecia lhes rondar (por causa de complicações após a remoção de câncer no intestino dela). Foi uma hora em que ela não esperou a liderança espiritual do meu pai, mas conseguiu confortar e animá-lo com as palavras deste salmo que havia cantado centenas de vezes nos cultos e em casa. Posso imaginar os dois cantando juntos, no silêncio do quarto—o contralto da minha mãe harmonizando com a voz tenor do meu pai. Amo ao Senhor, porque ele ouve a minha voz e as minhas súplicas. Porque inclinou para mim os seus ouvidos, invocá-lo-ei enquanto eu viver. Laços de morte me cercaram, e angústias do inferno se apoderaram de mim; caí em tribulação e tristeza. Então invoquei o nome do Senhor: Ó Senhor, livra-me a alma. Compassivo e justo é o Senhor; o nosso Deus é misericordioso. O Senhor vela pelos simples…

Mais adiante, o salmista fala: Preciosa é aos olhos do Senhor a morte dos seus santos. Não sei se meus pais cantaram esta parte juntos, apesar de terem memorizado todos os salmos em forma de rima quando eram crianças. Entretanto, o salmo cantado tem onze estrofes e a declaração fica na oitava (verifiquei isto na Bíblia da minha avó que tem o saltério no fim). Mas, neste momento em que meu pai se curvou por cima desta página da Bíblia da sua falecida esposa para registrar aquela lembrança, tenho certeza que ele havia lido este texto também e que estava procurando se confortar com a certeza que Ma estava feliz, num lugar bem melhor, livre dos sofrimentos dos seus últimos anos de vida (creio que ela passou sete a oito meses hospitalizada —várias vezes, à beira da morte).

Um papelzinho, inserido num outro salmo, diz: “Noite de 12 de março de 1990. Nesta noite li Salmo 125. E lembrei-me de uma noite em que estive com Ma no hospital. Ela estava extremamente cansada. Depois de que eu li este salmo para ela, havia um ponto de interrogação nos seus olhos, mas ela não falou. Então eu expliquei o significado dos primeiros dois versos, que o Senhor está conosco como as montanhas cercam Jerusalém. Que quando confiamos no Senhor, não teremos medo, porque as montanhas não podem sair do lugar. E eu posso ver o grande sorriso no rosto dela, como vi tantas vezes, quando ela se conscientizava do amor do Senhor, e a sua fidelidade. Memória abençoada”!

O Salmo 23, tem um “post-it” dele. Pelo que sei, foi o salmo 23 o último salmo que ela leu na sua Bíblia. Ela amava o Sl 23. Ela o lia muitas vezes… Que conforto! Que amor!

Tem outras anotações dele mas vou copiar apenas uma delas, escrita na letra firme e bonita que era característica do meu pai—era difícil entender como uma caligrafia tão elegante fluía de mãos tão grandes e calejadas. Foi escrito no dia do enterro de uma senhora amiga.

Esta é a manhã do dia 17 de maio de 1990. Hoje … será enterrada. Creio que ela foi uma das verdadeiras santas de Deus. Como ela orava nas reuniões de oração! Ela sempre queria ser a primeira—não podia esperar. Agora todos os seus problemas findaram; agora ela conhecerá como era conhecida…

Não sabemos como é lá em cima. Talvez ela esteja vendo Mommy agora e juntas elas estejam vendo o Senhor Jesus. Eu queria estar lá também—estar lá onde as lágrimas não se derramam mais. Onde não há mais noite, nem dor, nem choro. Tantos pensamentos surgem no meu coração e na minha mente. E, nesta manhã especialmente, sou forçado a relembrar o pequeno período que antecedeu a ida de Ma para ficar com o Senhor. Eu falei para ela—Sabe, lieverd (querida) você é a única namorada que tive. Eu nunca tive outra. E ela colocou seus braços no meu pescoço e disse—“Eu sei. Eu sei, e por isso, eu te amo muito”! Nunca me esquecerei disto. Ela era tão, tão afetiva. E, por isso, sinto tanta falta dela. E por isso foi sobre Mommy que pensei quando me lembrei que …. será enterrada hoje. Estão todos juntos agora—tantos que já amei, em algum tempo do passado…

Ó, para estar lá, onde nenhuma lágrima flui.
Ó, para vê-lO: “Aquele que é totalmente desejável” (Cantares de Salomão).

Tantos pensamentos surgiram na minha mente enquanto lia estas palavras, que fluíram do coração do meu pai para os papéis que agora estão nas minhas mãos.
— Reconhecimento do profundo desejo do meu pai de andar com Deus.
— Reflexões sobre a solidão dele e como deve ser a que é sentida por tantas pessoas que me cercam.
— Gratidão por ainda estar junto com o meu marido e pelos 34 anos que já desfrutamos, pois estamos quase na idade em que a morte separou os meus pais.
— Ponderações sobre as bênçãos que resultam na segunda metade da nossa vida quando mantemos as promessas que fizemos no dia do nosso casamento—quando entendemos desde o início que temos que lutar para sermos “nós” “até que a morte nos separe”.
— A percepção que companheirismo, intimidade e confiança são privilégios desfrutados apenas por aqueles que se dedicaram a construir seu relacionamento, dia após dia, nas alegrias e nas vitórias, nas tristezas e nas derrotas, na harmonia e na incompreensão, no envelhecer, no adoecer…
— Admiração por minha mãe, que muitos hoje tenderiam a desprezar como uma “verdadeira Amélia”, mas que soube amar um homem difícil. Creio que ela representa as milhões de mulheres do passado e do presente que levam seus votos matrimoniais a sério.
No fim, ela soube reconhecer e apreciar cada gesto dele ao cuidar dela nos últimos dois anos em que ficou inválida. Eles eram tão felizes—valorizando cada dia, cada momento…

Termino com uma prece ao Deus dos meus pais, que também é o meu Deus, para que eu também possa ser fiel até o dia em que me encontrar com “tantos que já amei, em algum tempo do passado” e com “Aquele que é totalmente desejável”—o meu Criador e Salvador.

Betty

7 Comentários a “Tesouros Inesperados na Bíblia da minha Mãe…”

  1. grace disse:

    Ah que trist! Estou tentando não deixar as lagrimas cair… Gostaria muito de ter conhecido minha avó. Isso me mostra como são importantes as coisas que nós escrevemos- mesmo achando que ninguem um dia ira ler o que esta escrito… Deixamos nosso legado as pessoas que não tiveram a oportunidade de nos conhecer pessoalmente.

  2. Vivian disse:

    Oi, Beth, comigo as lágrimas cairam. Como as coisas simples são preciosas! Que Deus nos ajude a sermos fiéis em nossos relacionamentos, como o de seus pais. Obrigado por compartilhar está história.

  3. Sirlanda disse:

    Que história linda, eu sempre faço anotações mas nada comparada ao que seus maravilhosos pais faziam.Lendo essa mensagem eu lembrei do amor SALOMÃO pela SUNAMITA. E é um amor assim que eu quero pra mim.

  4. tania cassiano disse:

    Betty, querida

    Lí sua crônica hoje, fiquei emocionada, mas ao mesmo tempo grata pela oportunidade que ela me deu para me edificar.
    Sua mãe, seu pai, você, são especiais, e está e estiveram para fazer a diferença.
    É tão bom ser crente!
    Vou ler e meditar nos Salmos que vc. citou.
    Um abraço carinhoso.
    Da sua irmã em Cristo,
    Tânia

  5. Mical disse:

    Que linda essa Crônica, termino de ler e estou chorando…clamando a Deus de todo meu coração que por sua Graça um dia eu esteja com esses queridos irmãos, pessoas que mesmo depois de mortas FALAM, e faço minha a oração de minha querida amiga Betty:
    “Que eu também possa ser fiel até o dia em que me encontrar com “tantos que já amei, em algum tempo do passado” e com “Aquele que é totalmente desejável”—o meu Criador e Salvador.”

  6. Solano disse:

    Betsy:

    Li novamente, hoje. Um primor de crônica. Somente uma artesã do texto conseguiria essa descrição” “… escrita na letra firme e bonita que era característica do meu pai—era difícil entender como uma caligrafia tão elegante fluía de mãos tão grandes e calejadas”.

    Certamente, uma peça de mestre e o mundo não merece ser sonegado do livro produzido por essas crônicas, pelo qual o clamor já ascende às alturas.

    É um privilégio estar compartilhando todos esses anos e do seu amor, com você,

    Solano

  7. Rosiane disse:

    Obrigada por compartilhar algo tão lindo. Estou no isolamento da iodoterapia, amanhã meu marido faz aniversário e depois de amanhã completa dezoito anos que começamos o namoro. Perdi meu Pai há 3 meses, num acidente aéreo. Estou relatando para que saiba como este texto acariciou meu coração. Que inspirador! Obrigada. Beijos, Rosiane

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