Uma Herança Espiritual—Parte 2

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(Crescendo na Fé — Filha de Agricultor mas, também, Filha do Rei)

Ontem passei algumas horas interagindo com o nosso filho mais velho, muito grata porque ele resolveu atualizar a versão do programa em que é feito meu blog. Apesar de eu estar toda orgulhosa por ter aprendido a colocar os meus posts sozinha (e até inserir fotos!), sempre aparecem pequenos ou grandes contratempos.

Somem meus itálicos, desaparecem os espaços entre os parágrafos, coloco uma foto e o texto todo fica centralizado, as informações do lado direito resolvem ir para o fundo da página, conserto tudo e quando gravo volta tudo inteiramente errado novamente…

E já que David mora no outro lado do planeta, muitas vezes tenho que esperar até ele acordar ou voltar ao computador para me acudir. Aí, em dois minutos, ele mexe com o “html” (que eu nem sei bem o que é) e está tudo maravilhoso novamente. Espero que, agora, o programa tenha ficado mais “obediente”.

Betty com 3 anos

David e eu nos comunicamos normalmente no bate-papo do MSN (ou no Skype) enquanto ficamos trabalhando “lado a lado” (de fato, é mais como “frente a frente”). Tem ocasiões em que mantemos um tipo de “silêncio dos achegados”—podendo ficar horas ou até alguns dias sem “conversar.”

Em outros momentos, contamos ou perguntamos algo relevante às nossas vidas ou compartilhamos pensamentos. Quando fico “tagarelando” e ele estiver ocupado, ele me diz. E vice-versa. De vez em quando ele corrige ou comenta um texto meu. Ou discutimos um texto dele para suas atividades com a igreja de Bangladesh ou para o blog que ele mantém em conjunto com seu irmão.

É um privilégio muito grande poder manter um dialogo com filhos adultos e ser tanto a pessoa aconselhada quanto a conselheira. Especialmente quando o convívio não pode ser “presencial”. A Internet pode ser uma incrível bênção neste aspecto—de baratear e facilitar a comunicação à distância. Podemos até nos ver e ouvir no Skype!

É tão diferente do tempo quando ele partiu para estudar numa faculdade no Canadá em 1993. Naquela época, sofríamos muito mais pelo fato de ligações telefônicas serem caríssimas e as cartas (quando escritas) levarem muitos dias para chegar. Uma “conversa” levava um mês ou mais para se realizar e, muitas vezes, o problema já estava resolvido ou as notícias inteiramente desatualizadas.

Mas estou divagando. A razão pela qual estou dizendo tudo isto é que David me perguntou, enquanto re-organizava meu site—Mãe, por que está guardando um post como “privado”? É algum segredo entre a senhora e Papai?
Eu nem sabia do que ele estava falando. —Nunca guardei nada em secreto no site.
Fui olhar e disse—É algo que postei em fevereiro de 2007.
E ele respondeu—Colocou lá mas ninguém viu porque está listado como “privado.” Apenas a senhora pode vê-lo.
Ah, é? Ninguém viu?! Como pode ser isto?
De algum modo, a senhora deve ter batido no lugar errado e guardado o texto desta maneira. É só “desprivatizá-lo”. Quer que eu faça?
Ainda não. Vou dar uma olhada para ver se é preciso revisar…

Assim sendo, dei uma olhada… Vi que o post deve ter ficado on-line por algum tempo porque tem um comentário nele. Mas não sei quando ele “sumiu”. De qualquer jeito, percebo que aqueles pensamentos estão se encaixando exatamente no assunto que comecei a tratar no último post—a minha herança espiritual. Interessante, não? Deste modo, apesar de já ter preparado aquela que pensava que seria a seguinte, vou inserir esta que David descobriu “hibernando” no meu site. Daqui a alguns dias, posto novamente, o Senhor Deus permitindo.

Crescendo na Fé — Filha de Agricultor mas, também, Filha do Rei

08 de fevereiro de 2007

Quando penso nos primeiros anos da minha vida, no Canadá, percebo que sempre esperava casar-me com um jovem fazendeiro, de descendência holandesa. Achava que ele teria olhos azuis e que a sua beleza máxima seria alcançada no verão quando a sua pele branca ficaria bronzeada e os cabelos loiros ainda se tornariam mais alvos enquanto trabalhava no sol do amanhecer até o anoitecer.

Seria bem alto (quase gigante—como eram meu pai e tios e, eventualmente, meus irmãos) e moraríamos numa fazenda com um bosque, um riacho e muitos animais. Eu cuidaria da casa, dos filhos e da horta. Ele também seria reformado na fé e eu o acompanharia nos trabalhos da igreja, ficando bem caladinha em tudo. Ele provavelmente teria qualidades para ser um diácono ou um presbítero.

Bem, aconteceu a última parte—o meu marido é presbítero e presbiteriano praticante—portanto reformado… E tenho casa e filhos. Mas do resto do que imaginava—nada se cumpriu! Solano é de estatura mediana e tem cabelos pretos e olhos castanhos. Moro num apartamento na terceira cidade maior do mundo, nunca tive horta própria e faz bem uns vinte anos desde que toquei numa vaca ou num porco. Eram bons sonhos—legítimos e bonitos. Mas Deus tinha outros planos, que acabaram sendo ainda melhores…

Nasci durante uma tempestade de neve durante o mês de dezembro—nove meses e um dia depois do casamento dos meus pais. Meu pai quase não conseguiu chegar ao hospital que distava uns 30 quilômetros da plantação de fumo que ele administrava. Sim, falei “fumo”. Naquela época, na minha denominação, fumar não era considerado pecado e tinha sido os donos de plantações como esta que haviam pago a passagem marítima das famílias dos meus pais. Precisavam de pessoas esforçadas para fazer o exigente trabalho braçal envolvido com este tipo de plantio e os holandeses protestantes haviam adquirido fama pelas suas habilidades e confiabilidade.

Os donos das fazendas nesta região, cujo solo era propício para esta colheita, eram pessoas corretas e não havia a exploração da qual tanto ouvimos falar em outras partes do mundo. Providenciavam moradia digna e salários que davam para amortizar o custo das passagens num período razoável. Quando meu pai demonstrou que era tanto capaz e confiável quanto trabalhador, acabou sendo logo promovido de peão para gerente. Pai, entretanto, havia saído de Holanda porque queria ser dono e não empregado. Queria administrar uma propriedade sua e as terras na Holanda eram escassas.

Portanto, quando eu estava com uns quatro anos, ele já tinha economizado o suficiente para dar entrada na sua própria fazenda (com gado de leite e plantação de feno e cereais). Para os padrões da área em que morávamos, era de tamanho normal. Aqui, no Brasil, seria um pedaço de terra pequeno—apenas 100 acres (aproximadamente 40 hectares), depois dobrado para 200 quando meus irmãos cresceram. Era o que um homem (com bastante esforço e sacrifício, e alguma ajuda da sua família e vizinhos) poderia trabalhar sozinho (usando um trator e maquinaria).

A maioria dos fazendeiros canadenses que conhecíamos (os que não tinham empregados e realmente colocavam “a mão no arado”) eram pessoas simples, com pouca instrução ou interesse em leitura e conhecimento. Sabiam pouco de geografia ou história, de matemática ou literatura, de química ou biologia, de arte ou música…

Os holandeses, entretanto, eram uma raça à parte. A educação que trouxeram da Holanda se restringia, normalmente, aos oito anos do ensino fundamental, mas eles sabiam muitas coisas, especialmente nas áreas de matemática e de conhecimentos gerais—coisas que eu só iria aprender no ensino médio ou na faculdade. E, por serem crentes, trouxeram consigo a tradição de freqüentar a igreja duas vezes por domingo, de estudar o catecismo, de ler a Bíblia e, também, devocionais diários em voz alta, e de orar em todas as refeições. Para a maioria deles isto bastava.

Meu pai, entretanto, ia além. Quando terminava o serviço, muitas vezes exausto, ele se restaurava lendo livros teológicos. Assim, tornou-se um agricultor-teólogo, e um crítico informado do “modernismo” e do “liberalismo” que percebia nos bastidores da nossa denominação. Não era fácil para ele, porque poucos dos outros fazendeiros holandeses conseguiam lhe acompanhar nas suas análises, e os pastores e teólogos que nos cercavam nem sempre davam ouvidos àquele homem que vinha às reuniões com mãos calejadas e unhas descoloradas e até cheirando um pouco ao esterco de animais!

Eu era a mais velha dos filhos do meu pai. Amava-o intensamente. Aos poucos, enquanto crescia e amadurecia, ele começou a compartilhar comigo aquilo que sabia e descobria. E, apesar de eu nunca chegar a realmente ler muitos dos autores que ele tanto amava, fui aprendendo com ele a avaliar e testar tudo que ouvia e vivia—na família, na escola, na igreja e nos muitos livros de outras categorias que consumia. (Só não devíamos questionar a opinião dele—algo que prejudicou seu relacionamento com meus irmãos—mas não vamos falar disto hoje). Mas foi assim que se formou a base da minha compreensão teológica.

Entretanto, agora que estou refletindo sobre aquilo que Deus usou para me tornar quem sou espiritualmente, percebo que esta base foi fundamentada em algumas contribuições prévias (e complementares).

1. A primeira influência foi da minha mãe. Ela raramente participava das conversas teológicas. De fato, não entendia porque meu pai tanto brigava por certos pontos—e sofria porque isto criava barreiras com parentes e amigos que prezava. Como adolescente, cheguei a sentir uma certa superioridade a ela e me arrependo até hoje das oportunidades que perdi de conhecer e apreciá-la melhor. Não sei quais eram as suas expectativas e o quanto ela sofreu com isto. Apenas dou graças a Deus que ele me permitiu um relacionamento mais próximo com minha própria filha.

Mamãe adorava biografias e histórias (imaginárias ou verdadeiras—tipo daquelas que apareciam em Seleções, revistas femininas ou livros de ficção) que ilustravam bondade, paciência, generosidade, altruísmo—virtudes que sabia que seu Pai celestial desejava de ver nela. Ela não queria entender ou esmiuçar os detalhes da teoria doutrinária. Apenas queria colocá-la em prática, sem brigas ou fanfarra. Assim, sem querer e sem perceber, a Dona Gertrude conseguiu ser um fator estabilizador na nossa família.

Percebo agora que a sua fé era tão firme quanto a do meu pai—talvez até mais. Enquanto ele se angustiava e ficava zangado com cada nova evidência de desvio eclesiástico das doutrinas que tanto apreciava, ela confiava que seu Deus estava no controle e que Ele iria resolver tudo do jeito dele, no tempo dele. E agora que já senti um pouco o que significa ter uma dor crônica, só posso admirar a sua fidelidade em procurar fazer, dia após dia, tudo que era esperado dela como filha de Deus—como dona de casa e esposa de fazendeiro—pois ela nunca gozou de boa saúde, até antes de ter e criar cinco dos seis filhos que foram gerados no pequeno espaço de sete anos. (Ela sonhava em ter 12 filhos!!!! Entretanto, teve que passar por uma histerectomia logo depois do nascimento do meu irmão caçula. Tinha apenas 29 anos na época).

Porque amava e servia a Deus, ela amava e honrava seu marido, e raramente permitiu que as tristezas que sofria por causa de algumas atitudes e ações se transformassem em mágoas e amargura. Ela nunca chamou a minha atenção para as imperfeições do meu pai, mesmo que, sentindo a minha falta de apreciação pelo jeito que ela era, pudesse ter tentado compensar, mostrando as falhas que ele também tinha. Em vez disto, creio que ela foi capaz de se alegrar no fato que eu conseguia complementá-lo em aspectos que ela não podia. Quantas de nós, mulheres, somos capazes de um amor tão altruísta?

Um pensamento à parte—Quem me fez enxergar melhor como minha mãe tinha qualidades especiais foi a minha sogra após ter passado alguns dias com ela durante a nossa lua-de-mel. Apesar de certas dificuldades na comunicação, Mamãe (Portela) voltou impressionadíssima com as virtudes de Ma (Zekveld). Comecei a vê-la com novos olhos e, ainda à distância, esforçar-me mais para valorizar as suas opiniões.

A fidelidade da minha mãe fez com que ela desenvolvesse um hábito extremamente precioso que durou enquanto nós éramos crianças. À noite, logo depois do jantar, ela se sentava com um livro de histórias bíblicas para crianças em holandês (escrito por um senhor chamado W.G. van de Hulst). O jeito de contar a história da redenção daquele volume refletia uma bela cosmovisão bíblica, apresentando o plano de Deus para salvar um povo desde o início. Através desta leitura e das suas conversas paralelas comigo, compreendi desde muito cedo que eu era pecadora e que Jesus havia sofrido e morrido por pessoas como eu (Escrevo mais sobre isto na minha Meditação após a Santa Ceia).

Iniciou-se também a minha compreensão da seqüência de personagens e histórias da Bíblia, desde Adão, Noé e os patriarcas, passando por reis, profetas, discípulos e apóstolos… Quando cresci um pouco mais e sabia ler bem, fui promovida a ler sozinha um capítulo diário de uma versão bem menos infantil, enquanto ela lia para meus irmãos menores. Ainda me lembro como era difícil parar com a leitura porque o autor sabia criar suspense entre um capítulo e outro. (Aquele primeiro livro veio comigo para o Brasil—ainda o tenho—e meus filhos, enquanto pequenos, também ouviram a história da redenção do mesmo modo que eu).

2. Foi no Departamento Infantil da Escola Dominical que a cronologia e os detalhes (tanto os essenciais quanto os triviais) das histórias bíblicas foram reforçados. Eu os conheço muito bem. Lamento apenas uma curiosa herança dos costumes holandeses. Em vez de versículos bíblicos, decorei, semana após semana e ano após ano, quase todos as estrofes dos hinos do nosso hinário—The Psalter Hymnal. Da Bíblia, apenas memorizei alguns trechos mais conhecidos, como os Dez Mandamentos (eram lidos do púlpito todo domingo), o Pai Nosso, o Salmo 23, as Bem-Aventuranças…

Só muito tempo depois foi que compreendi a razão por trás disto. Era que, na Holanda, as pessoas desta denominação apenas cantavam os salmos e uns poucos cânticos—gezangen (a maioria baseada em textos bíblicos, como o Cântico de Maria.) Assim, quando as crianças memorizavam o que cantavam na igreja, elas estavam decorando pedaços rimados da Bíblia. No Canadá, eles perpetuaram a mesma prática, mas incluindo quase 200 hinos.

Para mim, em retrospecto, teria sido muito melhor ter aprendido porções da Bíblia mesmo. Isto me faz falta até hoje. (Meus filhos acabaram tendo uma herança muito melhor nesta área, porque tiveram que decorar versos tanto para o Departamento Infantil quanto para a Escola Cristã que freqüentaram.) Adicione a isto o fato que passei por pelo menos duas versões da Bíblia em cada uma das três línguas com as quais convivi. Assim, talvez dê para entender porque, normalmente, tenho que ir à Bíblia para saber as palavras certas, em vez de recitá-las de memória como muitos crentes que têm a minha idade. Tenho uma “santa inveja” dessas pessoas…

Você pode dizer—mas você aprendeu o conteúdo dos salmos! Sim, é verdade. Todavia, a maioria era cantada pouco na igreja por não terem melodias, nem textos, muito acessíveis. Assim, quando fui estudar e morar longe, nunca mais os cantei nas outras igrejas que freqüentei e as palavras sumiram da minha memória (se realmente chegaram até lá, porque eu tinha uma capacidade impressionante de memorizar grandes porções, só que as esquecia imediatamente depois). Entretanto, não resta dúvida que pedacinhos das reações e reflexões dos salmistas ficaram no meu subconsciente e continuam ali como alicerce do aprendizado posterior.

3. O Catecismo de Heidelberg. Quando cheguei à idade de doze anos, passei quatro anos tendo classes semanais com o pastor. Durante este período, decorei as 119 perguntas e respostas desse catecismo e fui entendendo, mais e mais, as doutrinas da fé na qual havia sido batizada. Foi durante esta época que compreendi, maravilhada, a necessidade da “expiação substitutiva” de Cristo. Até então havia secretamente questionada porque Deus não tinha simplesmente resolvido perdoar o pecado humano e assim evitado a morte do Seu Filho. Mas agora entendi que Deus era tanto justo quanto misericordioso e que a justiça dele tinha que ser satisfeita.

Portanto, ainda que não possa apontar o dia da minha conversão (pois percebo como o Espírito Santo esteve trabalhando e contribuindo para isto desde o início da minha vida), foi nesta ocasião em que entendi o plano de salvação no qual já cria. Sim, eu cria, e entendia, mas eu continuava sem ter certeza que era salva. É possível isto?! É, sim! Havia várias outras pessoas na minha denominação e família assim—especialmente entre as mais velhas. Ainda faltava algo…

Deus, então, usou meu futuro marido para me ajudar a obter a segurança que almejava ter. Mas esta já é uma outra história. Por enquanto, vou parar aqui, dando graças a Deus por ter me dado os pais que tive e pelo exemplo de fidelidade que me legaram. Até a próxima, Betty

Um Comentário a “Uma Herança Espiritual—Parte 2”

  1. Vivian disse:

    Beth, muito edificante ouvir sobre o seu relacionamento com seus pais, e como sua vida foi edificada e fortalecida na Sã Doutrina. Fiquei muito feliz como seu site. Era sua leitora na revista SAF. Obrigado por compartilhar suas histórias.
    Com Carinho.
    Vivian
    vivian.sj@bol.con.br

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