Reflexões sobre Hospitalidade e Fraternidade (3)

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Já contei sobre a nossa estadia em Manaus, http://www.cronicasdocotidiano.com/?p=143, e depois explorei os exemplos bíblicos ligados a uma mulher sunamita (acolhendo o profeta Eliseu) no Antigo Testamento e a uma senhora chamada Lídia (hospedando Paulo e outros apóstolos) no Novo Testamento. http://www.cronicasdocotidiano.com/?p=153. Vamos continuar…

Você já parou alguma vez para destrinchar as referências a um casal chamado Priscila e Áquila no Novo Testamento? Entre idas e vindas, o casal, que não era romano, mas que foi banido de Roma, mudou-se para Corinto na Grécia, onde conheceu a Paulo e o acompanhou até Éfeso na Ásia Menor (onde ele os deixou ministrando). Eles voltaram depois para Roma e posteriormente para Éfeso, sempre participantes no trabalho de evangelização e doutrinamento (Atos 18; 1 Coríntios 16.19; Romanos 16.3-5; 2 Timóteo 4.19). Paulo os chamou de meus cooperadores em Cristo Jesus.

Esta cooperação começou quando Paulo foi acolhido pelo casal em Corinto, onde passou um bom tempo morando junto e trabalhando na mesma profissão que eles, fazendo tendas enquanto pregava o evangelho. Creio que eles devem ter tido (ou desenvolvido) um coração imensamente amplo e uma enorme disposição porque, além de abrigar Paulo e se disporem a acompanhá-lo nas suas viagens, eles também acolheram grupos muito maiores.

Afinal, Paulo enviou saudações de Áquila e Priscila e da igreja que está na casa deles em Éfeso, para os irmãos em Corinto. Mais tarde, ele, de Corinto, os saúda em Roma e a igreja que se reúne na casa deles.

Já pensou no que significa ter uma igreja reunindo-se na sua casa?! É hospedagem com “H” maiúsculo! (Daqui em diante, estarei olhando a situação da perspectiva feminina—a minha e a da Priscila.) Leia a bronca que Paulo dá aos coríntios em 1 Coríntios 11.19-34 e imagine aquilo acontecendo no seu próprio lar. Gente que vem filar bóia. Pessoas bêbadas e inconvenientes (o que tomavam naquelas santas ceias era vinho mesmo!) … Era um desafio ainda maior do que os dos nossos dias atuais, de abrigar uma reunião mensal de senhoras arrumadinhas e zelosas, ou a um estudo bíblico semanal com pessoas selecionadas; ou até aos amigos dos nossos filhos para um encontro, ou um pernoite de vez em quando (mas sei que Deus já se agrada, e muito, de todos aqueles que se dispõem a isto!).

Reflita nos problemas enfrentados nas igrejas da época (tratados nas cartas dos apóstolos) e imagine aqueles assuntos sendo discutidos, debatidos e vividos na sua sala de visitas ou no seu terraço (além das discordâncias doutrinarias, tinha gente imoral, insincera, desonesta, como também crianças—filhos de pessoas que, com certeza, ainda estavam aprendendo sobre como criar os filhos para Deus).

Pense no que você faz (se você não tiver filhos pequenos) quando recebe crianças na sua casa. Ou em como você age quando um desconhecido entra na sua casa para consertar alguma coisa. Você remove logo as coisas frágeis e esconde os objetos preciosos. Ou fica vigiando… A sua sala fica descaracterizada. Priscila possivelmente teve que fazer isto também. E constantemente!

Imagine-se administrando aquele misto de gente—pobres e ricos, escravos e senhores, peões e comerciantes, letrados e analfabetos, judeus e gregos, romanos e africanos, orgulhosos e humildes, agradáveis e chatos, mal-humorados e alegres, felizes e tristes, donos-da-verdade ou confusos… A maioria crescendo no Senhor, aos trancos e barrancos. Alguns não. Imagine-se ouvindo seus problemas e querendo solucioná-los, talvez encaminhando-os para irmãos ou irmãs mais preparadas…

Pense em como ficaria limpando o “banheiro” daquela época, sem os detergentes de hoje em dia, fazendo compras e cozinhando sem ter certeza quantas pessoas teriam que ser alimentadas, sem as verduras semi-preparadas dos supermercados atuais, providenciando assentos nas reuniões, talvez espalhando um perfuminho para esconder o cheiro de pessoas mal-asseadas, administrando a bebida, gozando de pouca (ou nenhuma) privacidade… Continuamente… Na saúde e na doença…

Será que você ainda teria disposição para chamar mais gente para dentro da sua casa para explicar as doutrinas que fizeram com que você se submetesse a aceitar ou a adotar este tipo de situações? Foi assim com Priscila e Áquila, pois Lucas nos diz sobre o recém-convertido Apolo que o levaram consigo e, com mais exatidão, lhe expuseram o caminho de Deus. Foi uma espécie de adoção temporária por pessoas que queriam investir no futuro do reino, acudindo e protegendo um aprendiz promissor…

Aparentemente tiveram tino para perceber onde Apolo precisava crescer e jeito para corrigir sem magoar ou frustrar… Quando seus tutores terminaram com as aulas particulares Apolo partiu, viajando e pregando na Ásia e na Grécia, capacitado agora como instrumento de Deus não somente para fortalecer novos crentes (…auxiliou muito aqueles que mediante a graça haviam crido), quanto para convencer judeus que ainda não haviam crido (com grande poder convencia publicamente os judeus, provando por meio das Escrituras que o Cristo é Jesus). Sua pregação tornou-se tão poderosa que tinha gente que dizia preferir seguir-lhe em vez de que a Paulo ou Pedro (1 Coríntios 1 e 3)!

Fico refletindo sobre como deve ter sido a satisfação de Priscila quando recebia notícias sobre Apolo ou quando se encontrava com pessoas transformadas através do seu ensino—de certo modo, seus netos na fé. Tudo porque, anteriormente, tinha se oferecido para abrir seu espaço e dedicar seu tempo a mais uma pessoa…

O casal formado por Priscila e seu marido pode nos servir muito bem como modelo de hospitalidade—ainda que poucos de nós precisam estar prontos para abrirem a sua casa para todo tipo de pessoas a qualquer hora em qualquer lugar. Pessoalmente, sou grande fã de Priscila. De todas as mulheres da Bíblia, é a senhora com quem mais me identifico, que mais me inspira… Nesta área e em outras… Um dia quero blogar mais sobre ela.

Os cumprimentos a Priscila e Áquila encabeçam uma série de saudações de Paulo na sua carta aos Romanos (capitulo 16). Apesar do apóstolo ainda não ter chegado à Roma, está mais do que óbvio que ele conhecia grande parte daquelas pessoas pessoalmente. Ele conviveu com elas, ou nos seus lares, ou ministrou lado a lado, ou talvez viajou junto… Ele chega a enviar lembranças até para os da casa deles. Digo isto, porque acredito que é muito difícil alguém sensibilizar-se com aqueles com quem não passou algum tempo, especialmente quando vive se encontrando com pessoas diferentes constantemente—algo que dificulta constatar e lembrar as individualidades de cada uma.

Por exemplo, acredito que a mãe do Rufo (Romanos 16.13) não teria impressionado tanto a Paulo, ao ponto dele declarar que ela também tem sido mãe para mim, sem ele ter convivido diretamente com ela em algum lugar fora de Roma, enquanto percorria as cidades ou vilas do império romano. Pergunto-me como ela lhe comunicou este aspecto maternal—deve ter sido algo muito além de lavar suas roupas e fornecer cama, comida e banho.

Imagino ela decifrando e satisfazendo seus gostos, tentando adivinhar as suas vontades, separando um assento confortável para seu uso, preparando lanchinhos, aquietando os netos para que ele pudesse dormir um pouco mais, procurando afastar as pessoas que poderiam perturbar seu tempo de meditação ou momentos de aconselhamento, até ousando lhe dar conselhos ou broncas nas áreas em que acumulara sabedoria…

Será que ela o conheceu desde menino? Ou talvez a empatia espiritual entre Paulo e seu filho Rufo foi tão grande que ela sentiu facilidade em assumir uma atitude maternal… Pode ser que Paulo ficou doente alguma vez e que ela cuidou dele. Pode ser até que ela resmungou internamente quando Rufo apareceu com Paulo para ser alimentado e abrigado e que teve que se esforçar para ser uma boa hospedeira. De qualquer jeito, o resultado foi que aquele missionário itinerante, sem esposa, sem lar próprio e longe da sua família, desfrutou por um tempo os benefícios do amor desinteressado e abnegado de uma senhora mais velha.

Nós que não temos mais esta pessoa em nossa vida, a nossa mãe, sabemos a falta que faz aquele carinho, aquele zelo, aquela certeza que seremos amados apesar de qualquer coisa, que seremos apoiados em todos os instantes, que tem alguém que quer nos proteger, nos poupar, nos paparicar… Assim podemos entender como Paulo deve ter se sentido refrescado por seu amor. E tenho certeza que ela ganhou um filho—alguém que zelou e orou por ela. Alguém que lhe honrou tremendamente quando compartilhou a sua gratidão, numa pequenina frase de saudação, numa carta que seria lida por milhões de pessoas através dos séculos.

Antes de encerrar estas reflexões sobre a mãe de Rufo, quero parar para agradecer a Deus pela pessoa que continua sendo mãe para mim—a minha sogra que agora mora conosco e que sempre quer me mimar e me poupar. Que me encoraja e incentiva, e ora por mim diariamente, juntamente com meu sogro.

Agradeço também pelo filho a mais que ele me deu, que entrou na minha casa através do meu filho mais velho há uns cinco anos, e que continuou conosco por um ano e meio. Tentei recebê-lo bem, mas relutei em dar-lhe o mesmo status que meus filhos, que logo o consideraram e trataram como verdadeiro irmão. Ele teve que agüentar uma gringa meio durona, que nem sempre soube ser carinhosa. Ouviu as mesmas broncas dos outros, e mais algumas, de vez em quando. Agora ele já criou asas, mas continua me tratando como mãe, compartilhando as alegrias e tristezas, participando de aniversários, casamentos e enterros, compensando a ausência dos outros três “rapazes” e sempre pronto para me levar para o aeroporto ou para fazer compras… Procura estar atento não apenas as minhas necessidades, mas chega a perceber os meus gostos e a intuir as minhas vontades. Um filho que também é irmão em Cristo, como meus outros filhos, pela graça de Deus.
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Eu ia parar aqui, por agora, mas minha filha me diz que “falta um desafio para quem está lendo”. Portanto, seguem-se mais alguns pensamentos pois Priscila e a mãe de Rufo me fizeram refletir muito sobre a qualidade da hospitalidade—a que tenho recebido e a que tenho oferecido—e como uma boa acolhida pode resultar em amizades duradouras e de efeito permanente.

Tenho uma amiga muito especial que encontrou abrigo no meu coração há 36 anos quando ela me hospedou na sua casa (então em Sergipe), numa viagem que fiz pelo Brasil com meu noivo (atual marido) e futuros sogros em 1971. Até hoje guardo uma toalhinha de mesa bordada (branca e vermelha) que ela me deu na despedida. Este presente de uma pessoa desconhecida tornou-se, na minha chegada de volta à casa dos meus pais no Canadá, uma prova da generosidade e receptividade do povo em meio ao qual eu iria morar.

Lembro-me que, na época, a “V” estava grávida da terceira filha. Quase ofegante no calor, ainda assim esbanjava alegria e prazer em nos receber, juntamente com seu marido. Quando surgiram as oportunidades de re-aproximação, em Itapissuma, Itamaracá, Recife, Vitória, São Paulo e depois Recife novamente (a biografia geográfica dela quase que parece a história da Priscila—Roma, Corinto, Éfeso, Roma, e Éfeso de novo), o relacionamento fluiu facilmente porque o “gelo do desconhecimento” já havia sido quebrado por ela.

Tenho observado a “V” em muitas situações e compartilhado a sua amizade não apenas com meus filhos mas com pessoas de baixa renda que foram sendo convertidas por Deus na nossa igreja em São Paulo. Estava sempre se colocando no lugar deles e se esforçava para que seus casamentos e aniversários ficassem bem mais próximo ao sonhado do que os nubentes ou aniversariantes pobres ousavam almejar. Emprestou e adaptou roupas para os noivos, fazia bolos, ornamentou, revelou as fotos, achou quem vestisse as crianças….

Percebia o desejo dos jovens de participar nos acampamentos—apadrinhava, arrumava sacolas de viagem… Levava para casa… Até hoje tem uma família na igreja que não se esquece do Natal em que dormiu na casa de “V” e “I”. Comeram da ceia numa mesa e numa casa belamente decoradas, receberam presentes escolhidos a dedo, cantaram hinos, aprenderam a participar da montagem do maior quebra-cabeça que já viram na sua vida… E “V” tem o raro dom de fazer com que seu marido e seus filhos também se envolvam e se entusiasmem com os preparativos e o custo.

Apenas um dia depois daquela ceia, nós duas estávamos juntas num hospital, orando com a mãe desta mesma família, implorando pela vida do filho que havia caído de cabeça do teto da casa da tia. O menino agora é um rapaz bem maior do que a gente, ativo na igreja, fiel a Deus, neto na fé de nós duas… A nossa amizade, que começou quando ela me hospedou, continua crescendo até à distância, e vou percebendo que ainda me falta muito para ser tão acolhedora quanto ela, tão alegre em servir, tão pronta para amar… Ela, bem como a mãe de Rufo, ilustra bem o ditado: “em coração de mãe, sempre cabe mais um.”

Como está o nosso “coração”? Podemo-nos lembrar da última vez que saímos do nosso caminho e abrimos mão do nosso conforto e dos nossos recursos para acolher, abrigar, ajudar ou aliviar alguém? Para ser “mãe” ou “pai” de alguém, ainda que seja apenas por algumas horas… Quem sabe, ainda se não existir um anjo no nosso destino, podemos estar participando no desabrochar de um futuro Apolo, ou acolhendo um dos atuais herdeiros de Paulo – mensageiro de Deus ao povo da sua época (Hebreus 13.2).

Sim, hospedar não é fácil. Exige tempo, esforço, sacrifício… Há custos. Mas numa avaliação “custo-benefício”, quando a acolhida é feita para agradar a Deus e para refletir o seu amor, os efeitos e as bênçãos da hospitalidade normalmente são bem maiores e duradouras do que o custo e o esforço expendidos, e estes, também, se revertem àquele que . Se receber já é bom, poder dar é melhor ainda!.. (Atos 20.35)

Será que tem mais gente hospedeira no Novo Testamento? Tem! Tem Carpo. Tem Filemom. E Gaio. E… E vai ter as minhas conclusões… Ficam para a(s) próxima(s) vez(es), se o Senhor Deus permitir…

Betty

(As Reflexões continuam aqui.)

2 Comentários a “Reflexões sobre Hospitalidade e Fraternidade (3)”

  1. Darius disse:

    Oi from El Salvador. 🙂 Gostei de ler seu blog. Te amo mae!

  2. Gabriela disse:

    Oi Betty! Vc tem sido benção na vida de “V” e eu fico feliz por isso! Concordo com vc que ela é isso td q vc falou. Deus abençoe seu dom de escrever e compartilhar o que o Senhor tem falado ao seu coração.
    Bjos,
    Gabriela

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