Devaneios…

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Esta postagem é um pouco diferente das anteriores. Quando meu marido a leu, ele sugeriu o título “Devaneios”. Depois, no meio da noite, quando percebeu em algum momento que eu não estava dormindo, ele cochichou no meu ouvido—você também pode chamar o blog de “Reflexões”. Acho que ele pensou que eu fiquei um pouco magoada com o titulo sugerido…

Eu, entretanto, gostei de “Devaneios”. Fui confirmar o significado no dicionário e parece que aquilo que publico aqui se encaixa, de certo modo, já que devanear é “fantasiar, sonhar ou dizer ou imaginar coisas sem nexo.” Minha filha confessou que era um pouco difícil de seguir meu raciocínio (mas ela o leu em meio à torcida do Grande Prêmio de Interlagos). Minha sogra disse que algumas partes estavam além do alcance dela. Meu sogro e meu marido disseram que gostaram….

De qualquer jeito, prepare-se para enfrentar uma colcha de retalhos, com pedaços de pano alinhavados arbitrariamente em vez de que zelosamente alinhados e pesponteados. Ainda assim, sustento que os vários tecidos usados são de boa qualidade e combinam entre si. Portanto, o resultado pode agradar. Ou não…

Sentada no meu Carro, numa Quarta de Manhã…

Agora que estamos morando próximo ao trabalho do meu esposo, e que não temos mais filhos em casa, o nosso carro sai bem menos da garagem. Mas, uma vez por mês, me vejo dentro dele a caminho de uma reunião do conselho de diretores de uma escola cristã na periferia da zona sul de São Paulo. Por ser tão pouco freqüente, já comecei a tratar esta ida como uma “viagem”, levando algo para beber, lanchar e ouvir durante os dois períodos de 60 a 90 minutos cada. (E para me manter acordada, já que quarta-feira é o dia do nosso rodízio e preciso estar “embelezada” e meio-caminho-andada antes das sete da manhã).

Nesta quarta peguei um CD que havia sido presenteado para os professores de uma universidade. Enquanto me empenhava para alcançar e atravessar a Avenida Bandeirantes antes da hora-limite, em meio a faróis que insistiam em ficar vermelhos quando me aproximava deles, e um trânsito extremamente vagaroso no sentido Centro-Congonhas, a voz do reitor foi penetrando no meu subconsciente, tecendo um paralelo entre o conjunto harmônico do corpo docente e o de uma obra musical. Quando finalmente consegui sair da área do rodízio com um minuto de sobra, percebi que não havia ouvido direito e coloquei o disco para tocar outra vez. Enquanto escutava as palavras novamente fui comparando a sua mensagem com uma outra introdução ao mesmo CD, do superintendente dos colégios da mesma instituição, para os mestres ligados a ele. Era uma apresentação igualmente agradável, mas inteiramente diferente. Em vez de percorrer o filosófico e alegórico, ele trilhou o passado, lembrando alguns professores que haviam marcado sua vida. Ambos, entretanto, pretendiam e demonstravam valorizar o empenho e a missão de educadores, naquele que seria o seu dia, o Dia do Professor (15 de outubro).

Você sabe como é quando começamos a pensar—um pensamento leva a outro, que leva a outro e, em segundos, a gente se encontra ruminando um assunto inteiramente diferente, com dificuldade para refazer o caminho até o assunto inicial. Não sei se isto é mais característico do sexo feminino. Eu, frequentemente, surpreendo meu marido com ponderações que não tem nada a ver com aquilo que ele acabou de dizer um ou dois minutos antes. Então, enquanto ele me encara com um olhar de quem não entendeu nada de nada, eu tento “rebobinar” o meu cérebro para ver como posso reapresentar o meu processo intelectual com alguma lógica!

Pois é, eu comecei a refletir sobre comunicação, partindo da comparação entre as duas saudações feitas para o CD. Sobre como lideres se empenham em caprichar na sua capacidade de transmitir seus pensamentos através das palavras. Pois há poder em palavras. Tanto nas escritas quanto nas faladas. Nas lidas e nas ouvidas. Poder para convencer, inspirar, motivar, incentivar, encorajar, confortar, unir, apaziguar… Poder também para dissuadir, destruir, desanimar, devastar, dividir, desafiar…

E o que faz com que um comunicador seja mais interessante, relevante ou eficaz do que outro comunicador? Um fator é a sua singularidade. Pode também ser a sua apresentação (timbre e tom de voz, aparência, roupa, capa do livro, etc.), ou sua fama ou notoriedade por feitos menos intelectuais, mas eu não estava pensando nisto. Estava me concentrando no conteúdo que se expressa—nos pensamentos distintivos que uma pessoa veicula através das suas palavras. Raciocinei que os ouvintes (inclusive eu) sempre desejam algo diferente daquilo que já viram ou ouviram. Querem sair da mesmice. Procuram algo que lhes emocione ou os sensibilize de alguma forma…

Meus pensamentos fluíram, fluíram, fluíram… Muito adiante, já no fim do CD, percebi que estava pensando sobre a condição de ser estrangeira. Refletia sobre as implicações (tanto negativas quanto positivas) para a criatividade na minha maneira de expressão que vinham da capacidade de “think outside the box”—uma frase norte-americana que está começando a aparecer aqui como “pensar fora da caixa”. Esta expressão se originou com uma tarefa geométrica na qual nove pontos têm que ser ligados usando quatro linhas retas e contínuas sem tirar a caneta do papel. A tarefa se torna fácil quando a pessoa não se limita a fazer as linhas dentro da área definida pelos nove pontos ou, “dentro da caixa”).
Veja: http://papyr.com/hypertextbooks/comp2/9dots.htm

Percebi que, para mim, esta possibilidade de pensar diferentemente daqueles que me cercam vem de modo relativamente fácil, pois minha origem e minha criação já me fizerem diferente desde que eu era criança (passei grande parte da minha juventude estranhamente lamentando este fato). Mas, pensei, todos nós temos esta capacidade se conscientemente pararmos de simplesmente repetir o que os outros nos ensinam ou nos impõem e passarmos a considerar outras opções. Normalmente, a rebeldia dos nossos jovens é ligada a isto e, em vez de trabalhar com este questionamento, muitas vezes nós apenas os silenciamos. Deveríamos reconhecer que eles realmente precisam saber por que devem seguir (ou não) certas tradições e por qual razão devem observar os limites traçados pelas pessoas que lhes cercam. Cogitei que os nossos adolescentes precisam aprender a avaliar tudo pela Palavra de Deus, inclusive o que os pais fazem ou deixam de fazer. Senão, nunca vão ser sal e luz numa sociedade que quer impor atitudes e leis que vão contra aquilo que o Criador dos seres humanos determinou para o bem deles.

Então a música acabou. O CD começou do princípio e a voz do reitor novamente surgiu, trazendo-me de volta às considerações originais, deixando-me intrigada com o rumo que minhas reflexões haviam tomado. Foi aí que peguei um guardanapo e, parada nos faróis vermelhos que novamente se enfileiravam diante de mim, comecei a anotar tudo que me lembrava dos pensamentos que me sobrevieram ao longo de 20 quilômetros e 15 canções.

Fui recordando. Os acordes do violão que acompanhava as felicitações do reitor cederam lugar para a voz grave de Louis Armstrong cantando “What a Wonderful World”. O meu cérebro assimilou a letra e fez a ligação entre a fantástica capacidade de comunicação do ser humano e o “mundo maravilhoso” percebido e, ao mesmo tempo, sonhado, pelo artista através das suas palavras—sons com sentido alinhavados de modo que transmitissem sentimento e significado

Pensei no maravilhoso mundo criado por Deus—o eterno comunicador (na Trindade). Lembrei-me de aulas de teologia quando estudávamos os atributos comunicáveis e os não-comunicáveis do divino, mas não vi muita conexão com onde queria chegar. Portanto, larguei os atributos e recordei-me do nome com que João descreveu Jesus no seu primeiro capítulo—o Logos—grego para Palavra. João começou asseverando que no início de tudo já existia o Logos. O Deus que já se comunicava entre três pessoas, agora estava retomando a comunicação (bidirecional e permanente) com os seres humanos—com a vinda de Jesus, expressão do seu amor, bondade, paciência, misericórdia, graça, verdade… Voltou o texto gravado na minha memória há muitos anos—E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai (João 1. 14).

E pensei: o nosso poder de comunicação através das palavras é muito especial. É uma das principais características que nos distingue dos animais. É o que nos aproxima de Deus. E é o conceito que Ele usa para ilustrar a sua aproximação conosco.

Entrou a música de Eric Clapton—Tears in Heaven. Palavras expressando um lamento pela morte trágica de um filho numa das canções mais reconhecidas mundialmente. Palavras com o poder de fazer aqueles que sofreram perdas parecidas sentirem-se compreendidas. Palavras capazes de sensibilizar aqueles que ainda não passaram por uma tragédia neste nível.

Quando Clapton canta “Lágrimas no Céu” ele é capaz de trazer lágrimas para os olhos de multidões aqui na terra. É uma música/poesia onde ele se pergunta como seria um reencontro mas, ao mesmo tempo, reconhece que “sabe” que “não pertence” àquele lugar onde imagina estar o seu filho. Isso me comove mais ainda porque a bela canção é realmente cantada por uma pessoa sem base alguma para esperança—uma esperança que eu tenho, pela misericórdia de Deus. Uma esperança que tenho a obrigação de compartilhar—através das palavras, estando sempre preparada para responder (explicar usando palavras) a todos aqueles que me pedem razão dela.

As minha palavras tem que explicar a razão por trás do meu procedimento. Eu posso esclarecer que eu creio que Cristo morreu uma única vez pelos pecados, o justo pelos injustos (eu e você), para nos conduzir a Deus—onde Jesus agora reina no céu à destra do Pai (I Pedro 3.15-22). E eu vou ver meus filhos no céu. E meus pais. Pelo amor de Cristo, “eu pertenço” àquele lugar. Nunca mais, vendo e derramando lágrimas.

Lembrei-me do sofrimento de um outro cantor e compositor com a perda do seu filho. Era uma situação trágica onde o pecado do Rei Davi trouxe conseqüências horríveis. (2 Samuel 12). Meu Deus perpetuou o registro poético das palavras de um homem quebrantado mas arrependido. Posso lê-las no Salmo 51 e usá-las para exprimir as minhas próprias angústias, e expressar as minhas penitências em oração ao mesmo Deus que perdoou Davi e o levou para o céu onde ele nunca mais derramará lágrimas. E nem seu filho. Pois Davi também falou de um re-encontro, dizendo sobre a criança—Eu irei a ela, porém ela não voltará para mim. Quantos pais cristãos, ao enterrar um filho pequeno, não devem ter se lembrado destas palavras de esperança interligadas com a expressão da triste constatação que aquele que se foi não volta mais?

Cogitei novamente como é grande o poder das palavras. Como é tremendo o poder da Palavra. E cada um de nós é um indivíduo com um potencial único de expressão verbal. Um potencial que pode ser desenvolvido, aumentado, embelezado, melhorado, aperfeiçoado… Para ter mais impacto. Ou para unir os corações de seres humanos. Seres com uma tremenda necessidade de serem compreendidos e amados através dos pensamentos que conseguem transmitir e ouvir.

Creio que foi pensando neste potencial único que cheguei a refletir sobre minha situação como estrangeira, até no país em que nasci. Sei que ainda deu tempo para pensar que toda nova experiência pode ter facetas difíceis (até traumáticas), mas, ao mesmo tempo, é uma oportunidade de ganhar outras perspectivas sobre a vida, que complementam aquilo que formava e limitava o conteúdo do nosso pensamento até então. E que, portanto, acabam enriquecendo o teor e o efeito das nossas palavras. Assim, tive o privilégio de enxergar mais um aspecto de como todas as coisas contribuem para o bem daqueles que amam a Deus (Romanos 8.28), desta vez com relação ao caminho que percorri para chegar à minha capacidade e originalidade no pensar e na comunicação (escrita).

Jesus já nos alertou que a boca fala do que está cheio o coração (Lucas 6.45). Refleti, portanto, como continuava sendo importante eu encher a minha mente com informações boas, construtivas e belas, juntamente com a compreensão dos ensinamentos dele, e com a comunicação das experiências de pessoas que conseguem captar beleza em tudo, ou que sobreviveram dificuldades e ainda sabem sorrir e amar… Para depois poder falar (ou escrever) coisas edificantes e proveitosas (e até brilhantes)… De maneira clara… Ou convincente… Ou comovente…

E foi assim que Deus permitiu que as palavras proferidas por dois educadores e cantadas por dois músicos penetrassem na minha mente e afetassem meus pensamentos enquanto enfrentava o trânsito de São Paulo, sentada no meu carro numa quarta de manhã… Saí da rua, parei no estacionamento da escola e comecei a usar a minha capacidade de raciocínio e expressão numa área inteiramente diferente.

Agora, entretanto, acabo de transformar aqueles pensamentos em palavras novamente. Palavras que serão transmitidas não por um CD, mas por um veículo ainda mais poderoso—a Internet—capaz de alcançar pessoas pensantes no mundo inteiro, quando eu empurrar um pequenino botão que diz “Publicar”.

E eu preciso começar a trabalhar na ata daquela reunião à qual me dirigia, re-criando num registro formal as minhas anotações dos pensamentos de 10 pessoas, emitidos através de centenas de palavras. Não preciso caprichar no estilo. Não preciso comover nem convencer. Apenas organizar e copiar. Alguém precisa fazer isto… Mas eu tenho que me esforçar muito mais para sentir qualquer prazer nesta verbalização. Ainda assim, quando termino, fico satisfeita por ter conseguido expressar o ocorrido e o que foi resolvido, clara e corretamente. Assim, os futuros lideres poderão saber aquilo que transcorreu e o que foi decidido e nós mesmos poderemos progredir e complementar aquilo que resolvemos no passado. Até a próxima…

Betty

Um Comentário a “Devaneios…”

  1. Tânia Cassiano disse:

    Betty,

    Que “Devaneio” edificante.
    Fiquei emocionada. Fazendo também, à medida que lia, reflexões sobre a responsabilidade que temos como filhas de Deus, estarmos preparadas para explicar a razão da nossa fé. E perceber o quanto preciso ler e refletir na Palavra de Deus.
    Obrigada pelo alento.
    Deus a abençoe.
    Um abraço,
    Tânia

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