Empatia Feminina (2) – Minha Avó Paterna – Primeira Parte

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Recentemente escrevi sobre o significado da minha sogra na minha vida. Isto me fez refletir sobre a convivência com outras mulheres da minha família, como minha mãe, irmã, filha, algumas tias… Entretanto, antes de computar e relatar o impacto destas, creio que é melhor iniciar pelo começo, pelas minhas avós, para compor um contexto mais compreensível.

As minhas lembranças das minhas duas avós são bem contrastantes. Uma era para mim o exemplo da avó que eu desejaria ser um dia. A outra, apesar de ser uma senhora íntegra e de valor, nunca a coloquei como o modelo de avó que eu gostaria de emular. Hoje vou falar desta última, mãe do meu pai—a que chamávamos de “Opoe” (pronuncia-se, aproximadamente, ôpú)—um dos nomes para Vovó em holandês. Existem outros—minha mãe preferia que seus netos a chamassem de “Oma”, por exemplo. E, apesar de nunca ter pensado nessa minha avó como exemplo, enquanto ia relembrando suas posturas, os incidentes e momentos da minha juventude em que ela se fez presente, fui percebendo as lições valiosas que aprendi, algumas apresentando um modelo a seguir e outras, apontando atitudes a evitar.

Neeltje De Haan nasceu no sul da Holanda no dia 02 de outubro de 1900 (coincidentemente, o mesmo dia e ano que meu avô materno). Portanto, quando eu a conheci, na década de mil novecentos e cinqüenta, ela já havia passado por duas guerras e pela grande depressão dos anos 1930. Alguns anos antes dele falecer, pedi para meu pai escrever um resumo daquilo que ele sabia sobre seus antepassados. Também tenho fotos e anotações que angariei de tias e tios para que meus filhos, ainda que radicados no outro lado do hemisfério, possam ter acesso a fatos sobre seus ancestrais europeus.

Deste modo, sei que Opoe era filha do segundo casamento da sua mãe, já viúva com dois filhos. Tenho uma foto dela como menina, com a família, e me informaram que dois dos irmãos mais jovens, que ali aparecem, morreram antes de chegar à adolescência. Ao contrário do seu futuro marido que viveu numa região grandemente evangelizada (onde escola, igreja e lar contribuíram para seu crescimento espiritual), Neeltje de Haan estudou numa escola pública e seus pais tiveram dificuldade em encontrar uma igreja com a qual concordassem.

Pelas roupas das três irmãs da foto que insiro aqui (a minha avó é a moça do lado esquerdo), podemos deduzir que ela cresceu num ambiente relativamente privilegiado e que aprendeu a ser fina no vestir e na arrumação de uma casa. Sempre teve empregadas para ajudar no serviço interno e externo do seu lar—até partir para o Canadá, com uns 48 anos.

Opoe com suas Irmas

Casou-se com um fazendeiro (Teunis Zekveld) com uma marcada deformação no rosto—lábio leporino—o qual futuramente seria passado para um dos seus filhos e também para um neto. Acho isto interessante porque a aparência dele, naquela época de cirurgias precárias, destoava da fascinação dela pelo belo. Ela optou unir-se a uma pessoa cuja bondade tinha que ser percebida apenas através dos olhos porque a boca ficava destorcida quando ele sorria. Dedicou todo seu tempo a ser companheira fiel deste homem. Foram marcantes a sua força e dedicação nos tempos de crise em que meu pai e tios cresceram (a depressão e a segunda guerra mundial, quando a Alemanha subjugou e explorou os holandeses). Para a sua família, ela era uma pessoa inabalável. Junto com seu marido, manteve uma postura firme e honesta em tempos de escassez, em meio a um mercado negro e enormes incertezas, administrando um lar com um cunhado cego e sete filhos (e vendo a morte de mais dois enquanto pequenos). Mas eu só sei disso de ouvir falar—ela nunca compartilhou os detalhes desta época comigo—era do feitio dela, nem procurar conhecer o íntimo dos seus netos, nem deixar que eles penetrassem nos seus próprios sentimentos e reflexões.

Creio que, apesar das enormes dificuldades enfrentadas até então (hoje nós nos consideramos “traumatizados” por muito, muito menos), seu mundo começou a desmoronar com a decisão de emigrar para o Canadá. Acompanhou seu marido na longa e difícil viagem marítima num navio cargueiro, mas não gostou nem um pouco das modificações e adaptações envolvidas—isso ficou muito evidente no fato de que ela se recusou, terminantemente, a falar a língua do seu novo país—eu nunca vi minha avó falar inglês mas sabia que ela entendia tudo. Acostumada a mobília e pertences de boa qualidade (dos quais só pôde trazer poucos itens, deixando para trás muito dos bens que tinham valor estimativo por ter sido herdado de vários ancestrais), teve que abrir mão do seu bom gosto e se contentar por algum tempo com qualquer coisa que estivesse em desconto, ou que fosse dado ou emprestado enquanto economizavam todo o possível para comprar a sua própria fazenda. (Conhecendo Opoe mais tarde, posso imaginar como isto deve ter sido difícil para ela, pois relutava em compartilhar do otimismo do marido).

Com todos os filhos se esforçando em conjunto, uma fazenda com gado de leite foi comprada em poucos anos, e meu avô mandou pintar EBENEZER em grandes letras na frente da casa—até aqui nos ajudou o Senhor. Meu tio nunca tirou a palavra—continua sendo uma declaração visível para todos os motoristas que passam por aquela estrada rural, e uma oportunidade única para testemunhar de Deus a todos que perguntam a razão por trás do nome enigmático.

Logo quando as coisas pareciam estar entrando nos eixos (uns cinco anos depois da sua chegada ao Canadá), meus avós planejaram a sua primeira visita à Holanda. Entretanto, meu avô passou mal. Uma cirurgia de emergência revelou que ele tinha câncer e ele morreu poucas semanas depois. Eu estava com três anos de idade na época e não me lembro disto. Entretanto, tenho recordações de rir muito quando ele me balançava nos joelhos, visualizando até a posição na sala em que a sua cadeira ficava nestes momentos.

Minha tia guarda, até hoje, as cartas de condolências recebidas por minha avó em que seus parentes externam a sua grande tristeza e consternação ao receberem a notícia dessa morte (via telegrama), tão poucos dias após a chegada das cartas alegres comunicando a compra das passagens que os levariam de volta ao seio da família saudosa. (As correspondências contando sobre o câncer só chegaram depois do aviso de falecimento.) Depois disso, nunca mais Opoe quis voltar para sua terra natal—apesar de viver ainda mais 40 anos. Desconfio que ela nunca esperou que Deus pudesse ter outros planos para sua vida, mesmo quando colocou o costumeiro “D.V.” (Se Deus Quiser) no fim das cartas dando notícias dos planos para a viagem.

A perda do seu marido foi um baque do qual Opoe nunca se recuperou. Sempre forte e saudável até então, em pouco tempo o corpo dela foi tomado pela artrite. Todos os movimentos tornaram-se dolorosos. De bengala, ela passou para andador e, eventualmente, para uma cadeira de rodas. Eu só me lembro dela doente, encurvada e “velha”. Percebo agora que ela tinha mais ou menos a minha idade quando enviuvou. Mas seu cabelo ficou branco rapidamente e ela amarrava as longas madeixas num severo coque. Vestiu-se de luto até o fim da vida. Era sempre séria. E parecia querer que nós, crianças, entendêssemos logo que havia muito pouco na vida para se alegrar e rir. Isto talvez explique a recusa dela de tricotear meias coloridas para mim (link). Na sua visão austera da vida, meias só podiam ser escuras.

Agora, porém, eu desenterrei uma memória melhor—ela também tricoteou um lindo vestido, quando eu tinha uns seis ou sete anos, que era vermelho com uma barra de gatinhos azuis bordados por cima. Lembro-me que o vestido era objeto de admiração de crianças e adultos, algo muito importante para mim numa época em que ninguém elogiava a aparência ou atitude de uma criança na tentativa de evitar que ela se tornasse vaidosa. Desconfio, entretanto, que a escolha da cor e a colocação dos gatinhos foi obra da filha dela, minha amada Tia Helena.

A primeira coisa que me vem à mente quando me lembro de Opoe, é o transtorno na nossa casa quando ela vinha nos visitar. Já que minha mãe gozava de pouca saúde – tinha problemas circulatórios com ulcerações nas pernas, entre outras coisas – ela dependia de bastante ajuda dos seus filhos e não tinha condições de continuamente fazer faxinas do jeito “holandês”. Nossas roupas eram limpas e passadas, a louça sempre lavada, a horta plantada, mantida e colhida, e a comida era saudável e gostosa. Varríamos diariamente e passávamos um “pano” (era uma esponja com vara) no chão.

Mas, quando se aproximava o dia da visita de Opõe, o pânico era geral! Os filhos todos tinham que entrar em ação. Um passava o espanador de teto e se deleitava em trazer para baixo todas as teias, com a obrigação conjunta de matar as aranhas para que não viessem a tecer sua arte novamente antes da chegada da minha avó. Eu, normalmente, me incumbia de esfregar as portas, as maçanetas e as paredes de todos os ambientes pelos quais ela iria passar (felizmente, ela não gostava de subir escadas)! Os tapetes eram lavados, como também as janelas e os vasos e pratos das violetas e cactos que ficavam nelas.

Tinha as coisas óbvias, como o fogão e a geladeira, os quais com certeza seriam inspecionados. E havia as coisas menos óbvias, como o espelho do relógio de pêndulo, as peças decorativas, os quadros na parede… Uma mancha numa toalha, a falta de brilho de uma torneira—nossa mãe temia, pois nada escapava dos olhos de Opoe. Meu pai subia numa escada e trazia os lustres para baixo para serem esvaziados e limpos da imensidão de insetos que entravam e morriam dentro deles. Fazíamos de tudo para evitar que a nossa avó voltasse para seu lar e para suas amigas comentando algo negativo sobre a visita à casa da nora. Alguma memória desagradável do passado deve ter alimentado esta mania por limpeza da minha mãe nestas ocasiões—não sei qual era.

Existia, entretanto, uma coisa que meu pai evitava remediar. O lustre da cozinha tinha um buraco de lado por causa de uma bolada forte de um dos meus irmãos. Como crianças, ficávamos esperando para ver se Opoe comentaria sobre o buraco. E, toda vez que ela dizia algo, pai dava uma resposta do tipo que a luz saía bem mais clara com o buraco. Para nós era como se fosse a maneira dele dizer—olhe, mãe, eu respeito a sua opinião, mas agora eu e a minha mulher estamos em nossa casa. E quem manda neste lustre somos nós!… (Quem finalmente trocou aquela luminária fui eu, quando me preparava para receber hóspedes de outros países, no meu casamento)!

Havia também um pesado açucareiro de vidro transparente, com uma das asas faltando, que meus pais haviam recebido (entre outros utensílios usados) ao casar-se para aproveitar até poder custear coisas melhores. A pessoa que deu o presente morreu pouco depois e o açucareiro tornou-se uma espécie de memorial à bondade dele. Opoe implicava com o uso deste e minha mãe procurava colocar outro na mesa durante as visitas (que se estendiam por alguns dias), mas de vez em quando, o velho ficava à mostra e o assunto vinha à tona novamente!… Estas visitas contrastavam por demais com os dias em que minha outra avó, mãe da minha mãe, vinha nos visitar. Mas não falarei sobre ela hoje. Por enquanto, creio que dá para perceber que não havia aquela empatia feminina entre sogra e nora que tem sido o meu privilégio gozar. E entendo que isto era, em grande parte, por culpa da minha avó.

Entretanto, minha mãe não ficava amargurada. Nunca a vi batendo boca com Opoe ou se defendendo de maneira agressiva. Quando eu cresci mais, ela comentou que, toda vez que Opoe partia, o sentimento de alívio era misturado com uma sensação de gratidão por ter conseguido arregimentar a família toda—inclusive meu pai—no esforço de deixar a parte visível da sua casa inteiramente limpa e organizada. Vi, então, que ela apreciava as mesmas coisas que a sua sogra e que apenas teria gostado que esta entendesse e relevasse as suas limitações.

Já anotei e re-considerei mais memórias desta avó—algumas mais agradáveis. Mas vou parar aqui por hoje, encerrando com uma pequena reflexão sobre esta incapacidade de Opoe de se calar diante das coisas que lhe incomodavam. Ela conseguia abrir a boca para criticar e repreender, mas tinha muita dificuldade em contrabalançar estas palavras com expressões de louvor, apreciação ou encorajamento.

Eu não sou avó ainda, mas já sou mãe/sogra de seis (indo para oito) jovens adultos e independentes, e mais alguns “agregados” que Deus tem colocado em nossa vida. De vez em quando me pego dando vazão às minhas preocupações e julgamentos sobre algo que penso enxergar no seu estilo de vida, falando demais ou fora de hora. Acabo fazendo com que aquilo que quase sempre é uma pequena coisa pareça monstruosa em vez de ficar com as mãos levantadas para o céu (e deixando-os perceber como sou grata) pelas centenas e milhares de atividades e atitudes boas que eles já incorporaram a seu modo de viver—muitas vezes, sem ou apesar da minha influência.

Segue uma paráfrase de pedacinhos da palavra de Deus como oração para mim mesma neste momento de conscientização. Peço a Ele que:
A minha vida possa ser caracterizada por amor, paciência, amabilidade, bondade
A minha palavra seja sempre agradável e que da minha boca saia unicamente aquilo que edifica, conforme a necessidade, transmitindo graça (e não tristeza) aos que ouvem;
Eu possa me empenhar continuamente a ser bondosa, compassiva e perdoadora;
Eu seja “possuída” de tanta bondade e conhecimento que estes me tornem “apta” até a “admoestar”, mas apenas quando isto for realmente necessário, fazendo com que seja percebido não como censura, mas como amor (pelo menos por Deus que conhece o meu coração).
(“Garimpado” de Gl 5.22; Cl 4.6; Ef 4.29-32; Rm 15.14; Ef 4.2; Cl 3.12)

Foi bom “conversar” com você,

Betty

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