EU ME POUPAREI, OU ME GASTAREI?

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Verifiquei recentemente que ainda não havia postado este, meu primeiro conto usando a personagem de Isabel. Relendo-o, lembro por que hesitei em compartilhá-lo novamente. É porque alguns aspectos da minha percepção do assunto tratado passaram por transformações desde o tempo em que o escrevi. Ainda creio que seja bíblico, aquilo que está registrado aqui, mas que nem tudo se aplica, para todos, em todos os momentos. Isto porque passei por um período difícil na minha vida, logo depois da escrita do artigo, em que estas palavras não me falavam do mesmo modo. Agora, novamente, me sinto motivada por elas e resolvi colocá-las on-line, do jeito que escrevi. No fim do texto, tecerei alguns comentários sobre aquilo que creio que Deus estava pretendendo me ensinar. Não se esqueca de procurá-los (depois das referências bíblicas).

Isabel caiu na cama. Era quase meia-noite e ela estava exausta. Fechou os olhos e tentou acomodar-se. Aquela dor chata na perna estava querendo começar de novo. Sempre era pior quando se esgotava e hoje o dia inteiro havia sido cheio. Os seus pensamentos voltaram ao estudo bíblico do qual havia participado naquela manhã. Eram umas dez mulheres, a maioria esposas de líderes evangélicos, todas empenhadas em servir a Deus e ativas no seu lar, igreja e comunidade. Ela nem se lembrava como haviam chegado ao assunto, enquanto estudavam o livro de Tiago mas, de repente, estavam compartilhando as suas vidas super-atarefadas. Concluíram que estava no tempo de re-avaliarem o seu estilo de vida e de começarem a poupar mais a si, pois a sua saúde, seu humor e seus lares estavam sofrendo.

Isabel falou pouco. Sabia que algumas no grupo realmente haviam permitido que outras pessoas lhes convencessem que capacidade e talento eram sinônimos de “chamado”. Por motivos sinceros, haviam acumulado responsabilidades demais. Isabel desconfiou também que havia áreas na sua própria vida que precisavam ser reestruturadas. E enquanto ela ficou deitada, acordada, tentando acomodar a perna sem incomodar o marido, seu coração começou a ansiar por um estilo de vida diferente. Começou a sonhar com a vida menos cheia, mais previsível… Com dias em que nem precisava sair de casa, e em que poderia levantar, cuidar apenas da sua família, fazer ginástica, assistir um filme ou ler um livro e dormir na hora certa, sem aquele senso de urgência que ficava avisando -“Ainda falta visitar aquela doente, ligar para fulana, escrever para beltrana, ir àquela reunião, preparar a lição…” Será que ela não estaria pecando por forçar tanto o seu corpo, além dos limites do cansaço e da dor? Será que não seria a vontade de Deus para ela também começar a poupar a si própria para garantir a longevidade e a paz de espírito? E foi assim que ela dormiu, cansada, confusa, desanimada…

Na manhã seguinte, Isabel acordou sem a dor na perna e despachou a família. Continuava com o propósito de se poupar mais. P’ra que tanto desgaste? Mas, por enquanto, tinha que cumprir com o prometido e assim ela se sentou para preparar a lição da Escola Dominical. Ao pegar a Bíblia, esta se abriu na contracapa da frente. Seus olhos caíram no primeiro versículo que havia escrito lá. Eu, de boa vontade, me gastarei e ainda me deixarei gastar em prol das vossas almas…. (2 Coríntios 12.15) Gastar-se! Logo agora! Quase parecia palavrão! Fazia tempo que havia pensado naquele texto, apesar de ser essa a terceira Bíblia em que havia feito questão de copiá-lo. Relutante, tentou vislumbrar novamente os sentimentos que lhe inspiraram a transcrever aquelas palavras na primeira vez. Foi uma missionária americana, Dona Eva, que havia pedido para colocar o versículo no início da última carta aos seus mantenedores, poucas semanas antes de falecer.

Na época, Isabel ficara impressionada como o apóstolo Paulo havia forçado o seu corpo além dos limites naturais. Tantas vezes, havia trabalhado e ensinado noite adentro, ficado sem repouso, enfrentado perigos, passado fome, perseverado apesar da dor, compartilhado do sofrimento dos outros… E isto lhe havia dado alegria e satisfação porque estava sendo usado por Deus para abençoar outros seres humanos. E ela agora, onde estava a sua própria alegria e satisfação? Será que a prontidão e o prazer de Paulo e a dedicação da Dona Eva não precisavam mais ser os seus exemplos? Será que aquele versículo teria alguma coisa a ver com a sua vida? Afinal, eles eram missionários. E ela não. Pelo menos não no sentido tradicional da palavra –uma pessoa enviada e sustentada por outras pessoas para revelar Cristo aos que ainda não lhe conheciam ou adoravam. Não tinha ninguém esperando os seus relatórios sobre como a sua vida e o seu amor sacrificial estavam tendo um impacto transformador nas pessoas às quais havia sido enviado.

A sua mente voltou ao último ano da vida de Dona Eva. Dona Eva havia trabalhado com a sua denominação durante uns 40 anos em lugares onde ninguém queria ir (a maior parte no sertão do nordeste) — ajudando, construindo, evangelizando, ensinando… Era uma fiel serva de Deus, pessoa abnegada e exigente, inteiramente dedicada àquilo que visualizava como a sua missão na vida. Porém, a mesma franqueza e sinceridade que haviam incentivado os seus mantenedores na América do Norte a apoiá-la fielmente durante décadas, haviam resultado em relações de antipatia com quase todos os líderes nacionais. Embora esses reconhecessem o esforço e também os benefícios financeiros que a Dona Eva havia trazido à obra, poucos existiam que não se lembravam de ocasiões em que tinham recebido notórios puxões de orelha ou em que suas atitudes ou ações tinham sido trucidadas por sua língua afiada. Dona Eva virava uma fera quando pensava, correta ou erroneamente, que a obra de Deus estava sendo feito relaxadamente, O passar dos anos em solidão e privações não contribuíram em nada para torná-la mais doce ou suave.

Mas Dona Eva envelheceu. Chegou a hora em que precisou de cuidados médicos. Veio à capital, ficando nas casas daqueles que lidavam diretamente com o trabalho dela, enquanto se tratava. Por onde passava, esgotava a paciência dos que lhe hospedavam. Várias vezes, tentou retomar ao campo. Finalmente, a missão americana resolveu que estava na hora dela parar de trabalhar. Sugeriu que voltasse para se internar num lar de idosos.

Dona Eva relutou. Ainda esperava que a doença poderia ser contornada. Um dia, enviou uma carta aos sogros da Isabel. Pedia permissão para morar na casa deles enquanto se trataria novamente e decidiria os rumos da vida dela. Por se ver obrigada a encerrar a sua carreira de missionária, iria se desfazer da maioria dos seus pertences. Estaria trazendo apenas objetos pessoais e outros para doação. Os problemas de (e com) Dona Eva não eram surpresa para o casal (na época, com uns 60 anos de idade). As experiências das outras famílias haviam sido assunto das reuniões da SAF, do Conselho e do Presbitério.

Dona Eva recebeu uma carta carinhosa de volta, escrita por Dona Valdete, dizendo que seria um privilégio recebê-la na casa deles. Disse a Isabel que entendia como havia sido difícil para Dona Eva pedir este favor. Isabel também compreendia a razão da escolha da Dona Eva. Afinal, esta já havia experimentado o dom de hospitalidade dos seus sogros em ocasiões anteriores, em passagens rápidas para participar de conferências missionárias na cidade.

O guarda-roupa e as gavetas das cômodas foram esvaziadas e Dona Eva se instalou no quarto de hóspedes por um período que, inicialmente, seria bem pequeno. Passaram-se semanas, meses, um ano… Colocou-se escrivaninha, luz especial, um ventilador mais regulável… Reforçaram-se as telas. As refeições foram adaptadas para incluir os gostos e as necessidades da hóspede. O modo de vida do casal foi modificado para evitar os barulhos e hábitos que poderiam incomodar. Procuravam animar, alegrar e valorizá-la.

Consultas médicas e idas ao hospital começaram a fazer parte da rotina da família. A “velha guerreira”, sempre tão independente, ficou mais e mais limitada. Sabia que estava causando transtornos mas lhe era difícil deixar de render-se ao carinho que lhe cercava. Um banquinho foi encontrado para que pudesse sentar-se no chuveiro quando fosse banhada por Dona Valdete. Precisava de apoio para locomover-se e as idas noturnas ao banheiro se tornaram mais freqüentes. Sempre era a Dona Valdete que cuidava de tudo, calma e carinhosamente, procurando ao máximo evitar-lhe constrangimento. Ainda assim, havia dias em que Dona Eva ficava muito nervosa, quando nada lhe parecia bom, e ela se fechava propositadamente para não despejar a sua frustração em quem não merecia. Dona Valdete entendia, se colocava no lugar dela e relevava tudo, sem murmuração. Ficava triste quando Eva lhe pedia desculpas por um gesto brusco ou uma palavra dura que havia proferido. Compartilhava as “aventuras” do dia com Isabel e as duas procuravam novos meios para distrair e melhorar a vida da inquilina não solicitada. Isabel, que morava no andar de baixo, subia toda tarde para escrever as cartas que lhe eram ditadas ou simplesmente para conversar um pouco na língua materna da Dona Eva. Ficou sabendo de grande parte da sua vida—uma vida de rejeição e lutas desde a infância e assim pôde entender um pouco melhor o jeito de ser da velha senhora. Era nestas horas que a Dona Valdete folgava.

Os problemas respiratórios pioraram e as hospitalizações ficaram mais freqüentes. Ela ficou mais e mais irracional, mas Dona Valdete não cessava de manter-se carinhosa. Com muito jeito, penteava e trançava seus longos cabelos, alisava sua cabeça ou segurava na sua mão. Dava-lhe de comer, uma colher após a outra, conversando ternamente. Nas horas de agitação, lia a Bíblia ou cantava hinos suaves. Insistia pacientemente quando ela se recusava a tomar os remédios. Não reclamava da sua própria dor na coluna, da falta de sono, do incômodo, nem da artrite evidenciada pelos dedos inchados nas juntas. Sabia que o sacrifício não duraria para sempre, mas não tinha noção de quanto tempo seria. Recusava-se a sugerir que fosse embora. Então, um dia, Dona Eva faleceu no hospital, repentinamente, na terra que havia adotado. Dona Valdete ficou aliviada, não pela própria libertação, mas porque tinha certeza que a sua irmã em Cristo, tão sofrida, havia “descansado” e nunca mais sentiria a humilhação da impotência e das limitações físicas.

Como Isabel se orgulhava dos seus sogros. Dona Valdete e Dr. ]uarez haviam ultrapassado os limites do dever e haviam perseverado. Haviam socorrido a irmã em Cristo que tinha dedicado a sua vida inteira aos pobres do Brasil. Cansada, doente e triste, ela havia experimentado o amor e o cuidado que ninguém mais queria dar, que ninguém mais se achou no dever de dar. Para todos os demais, ficar com Dona Eva era uma tarefa impossível. Mas para eles, foi possível—simplesmente porque a encaravam como necessária. Para eles, era inteiramente compreensível o seu medo de ficar enclausurada num lar para idosos num país que não era mais o dela. A necessidade havia sido colocada diante deles. Houve a decisão que não seria desfeita. Deus lhes daria as forças e os meios. E foi isso mesmo que Ele fez.

Duas mulheres na vida de Isabel. Uma havia lhe dado o versículo. A outra deu e ainda lhe dava exemplo. Dezoito anos depois, aquele quarto de hóspedes continuava a receber pessoas—muitas vezes sofrendo de tristeza ou de doenças crônicas ou terminais. Eram mulheres que sabiam que Dona Valdete entendia o seu anseio de preservar a dignidade enquanto se tomavam mais e mais debilitadas e dependentes. Algumas eram convidadas, outras imploravam para que as suas famílias permitissem que elas fossem “passar uns dias na casa da Valdete”. Cris, a sua fiel ajudante, tomou-se especialista em dar banhos em cima daquele mesmo banquinho e em preparar comidas gostosas e atraentes, sem sal ou sem açúcar ou sem gordura, conforme a necessidade. O médico da família nunca reclamava quando recebia uma ligação pedindo conselhos sobre como cuidar de algum aspecto novo e assustador no desenrolar dos sintomas das doenças daquelas hóspedes.

Isabel se deu conta de que, nesse período todo, as dores na coluna da sua sogra não melhoraram, a artrite estava pior, ela sentia tonturas e o coração também já exigia cuidados. Mas ela ainda se levantava durante as noites para “dar uma espiadinha” na amiga para ver se estava precisando de mais um copo de água, se as “muriçocas” estavam incomodando, se o ventilador estava na posição certa, se precisava ir ao banheiro. Muitas vezes encontrava a paciente acordada e ficava com ela para compartilhar da dor ou das preocupações que estavam afastando o sono. Enxugava a testa, ajeitava ou trocava os lençóis… Contava histórias, escolhia e lia passagens bíblicas… A sua missão continuava a ser a de tentar ajudar e aliviar, de ser canal do amor de Deus.

E Isabel continuou refletindo, —Será que a vida da Mamãe teria sido melhor se ela tivesse dito, “Agora está na hora de enfrentar minhas limitações. Já estou ficando velha e cansada demais para isso. Preciso pensar na minha saúde e preservar o meu sono. Se não tiver cuidado, não vou viver o bastante para ver meus netos crescerem. Também chegou a hora de parar de gastar nossos poucos recursos com os outros. Um dia, a gente vai ficar doente e vai precisar ter uma poupança maior”. Ela tinha certeza de que aquela opção não existia para sua sogra. Apesar dela não ser uma “missionária” no sentido formal, a sua vida era uma missão. Afinal, ela acreditava ter sido criada e preparada por Deus para servi-lo, ajudando ao seu próximo. Como Paulo, estava pronta para gastar-se e deixar-se ser gasta, pois havia sido treinada para correr a corrida da vida, escravizando e dominando o seu corpo para se tornar cooperadora do evangelho. Permaneciam, todos marcados, na sua Bíblia, os termos que Isabel estava querendo tanto esquecer—palavras como hospitalidade, perseverar, sofrer, servir, acolher, suportar; participar dos sofrimentos, compartilhar as necessidades…

Isabel pôs-se a procurar estas passagens que falavam de sacrifício e serviço na vida cristã. Eram tantas! Começando pelos evangelhos quando Jesus falou sobre perder a vida por ele para ganhá-la, continuando por Paulo e Pedro e Tiago e João…! Encontrou —Ora, aquele que possuir recursos deste mundo e vir a seu irmão padecer necessidade e fechar-lhe o seu coração, como pode permanecer nele o amor de Deus e Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus. Viu que, para complicar, muitas delas se completavam com termos e promessas que não pareciam compatíveis—termos como glória, vitória, alegria, gozo, paz, prêmio, liberdade, descanso… E Deus garantia seu apoio multiplicando as forças daqueles que não tinham nenhum vigor. Ficou estarrecida. Como um pouquinho de cansaço havia conseguido apagar tudo isto da mente dela!

Finalmente, Isabel releu 2 Coríntios 12 para situar “o versículo da Dona Eva”. Um sorriso de paz iluminou seu rosto quando leu, no mesmo capítulo, a resposta de Deus ao espinho na carne de Paulo: —A minha graça te basta porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza… Rededicou-se ao Senhor, rendendo-lhe o seu espinho de fadiga e frustração e levantou-se com ânimo redobrado. Ela também iria gastar-se e ser gasta em serviço ao Seu Senhor. E ela pensou: —Mamãe querida, O que aprendi, e recebi, e ouvi, e vi, em ti, isso praticarei; pois o Deus de paz está contigo. (Filipenses 4.9). Eu também continuarei exercendo o meu dom de misericórdia com alegria. O meu corpo será meu sacrifício vivo e, quando Deus me mostrar uma oportunidade para servi-lo, procurarei abrir mão do repouso, conforto e prazer que o meu físico pede. Confio que, como a senhora, vou acordar toda manhã com as forças renovadas e assim vou continuar a experimentar qual seja a boa, agradável e perfeita vontade do meu bondoso Deus.

Elizabeth Zekveld Portela
Publicado na SAF em Revista, 4º Trimestre / 1999

Esta história é baseada em fatos verídicos. Os nomes das personagens foram modificados.
Citações bíblicas Sacrifício Pessoal: Mateus 5.16; Lucas 9.24, 17.33; Romanos 2.7; 6.19,22; 8.17; 12.1,2,8,13; 15.7; 1 Coríntios 9.23,27; 12.26; 2Coríntios 8.2,4; Hebreus 13.2; 2 Timóteo 1.8, 2.10; 1 Pedro 4.9,10; 1 João 3.17; 3 João 8
Ajuda e recompensa divina: Isaías 40.29-31; Mateus11.28; Romanos 8.18; 12.8; 15.13; 1João 5.4

Comentários em fevereiro de 2007. Como já falei, “Eu me Pouparei…?” foi a minha primeira “história de Isabel”. E quase que foi a última! Isto porque a dor que eu (Isabel) sentia na perna no início desta crônica era, de fato, o começo de uma flebite. Eu tinha muitas varizes, mas elas raramente incomodavam. Não as via como uma ameaça à minha saúde. Achava que eram apenas um problema estético. Mas veio a flebite—uma perna ficou vermelha, inchou e eu iniciei um tratamento médico. Uma noite, repentinamente, comecei a sentir muita falta de ar. Corremos para o hospital, onde diagnosticaram uma embolia pulmonar, proveniente de algum coágulo da flebite. Passei vários dias internada, fiz um monte de exames e comecei a tomar remédios anti-coagulantes.

Assim, quando a revista saiu, eu estava lutando para me recuperar. Por quase um ano, tive que ficar “de molho”, esperando ter condições para operar as varizes nas duas pernas. Tudo havia mudado! Lembro-me de como me senti quando vi a revista. Tudo que havia escrito, que encaixava tão bem com a pessoa que havia sido poucos meses antes, agora não combinava mais com a minha realidade. Pelo menos não da forma em que havia expresso o meu entendimento das promessas de Deus para seus filhos fiéis. Eu imaginava que Deus iria sempre me dar forças para trabalhar, era só eu me dispor. É só ler a conclusão de novo, que isto fica óbvio. Deus havia falhado? Eu, que havia escolhido “falar” através da Isabel, para que o ensino não fosse apenas acadêmico, sentia que aquela Isabel não existia mais. Era impossível seguir meus próprios conselhos!

Por um tempo que parecia interminável, tive que aprender a me conformar a ser absolutamente inútil fisicamente. Fiquei meses sem poder dirigir, fazer compras, cuidar da minha casa, ensinar, visitar, dar banho no cachorro, mexer no meu jardim… Tudo era proibido! Tinha que conviver com meu sangue “traiçoeiro” pois não havia como garantir que outros coágulos não viessem para me prejudicar. Todo mal-estar ameaçava ser outra embolia. Nada de me gastar. Tinha que me poupar. Com apenas 47 anos, parecia que havia chegado à velhice sem ter passado pela meia-idade! Não sabia, se minha vida voltaria, um dia, a ser “normal”.

Pensar no artigo me dava calafrios. Por um bom tempo, achava que havia feito mal em publicar aquilo que havia escrito. Fiquei preocupada ao pensar que algumas leitoras poderiam sentir-se desencorajadas, em vez de que incentivadas da maneira que imaginava quando ousara compartilhar o que Deus estava me ensinando naquela época. Comecei a desconfiar que minhas conclusões haviam sido abrangentes demais.

Só com o passar do tempo, entendi que os ensinamentos da Bíblia continuavam a ser verdadeiros (é claro), mas que eu mesma precisava aprender a receber, em vez de que dar. A assumir a condição da Dona Eva da história, em vez de que a da Dona Valdete… A deixar outras pessoas servirem a Deus enquanto cuidavam de mim. Poucas pessoas no mundo têm sido tão bem cuidadas quanto eu fui durante aquele ano. Nunca esperei ser alvo de tanto carinho e dedicação, começando pela minha família e meu marido, em especial. Eu via aquilo, procurava ser grata e demonstrar apreciação, mas o que mais queria fazer era chorar. Não desejava mais ouvir os problemas dos irmãos que telefonavam (logo quando era uma das poucas coisas que ainda podia fazer!), assistir noticiários tristes, ver filmes trágicos, escrever cartas… O desespero queria tomar conta de mim mas eu me agarrava à certeza de que havia maneiras de superá-lo, de aprender a ser contente em todas as situações, como Paulo em Filipenses 4.11.

Um dia eu talvez escreva mais sobre este período que demorou tanto para se dissipar… No qual lutei com o significado da minha vida terrena como algo momentâneo, transitório, evanescente, efêmero, passageiro… No qual aprendi que eu realmente sabia muito pouco sobre confiar, depender ou descansar nos desígnios do meu Pai celestial. E que quase ninguém percebeu… Por enquanto, dou graças a Deus pela atual graça da paz e alegria, ainda em meio a outros problemas e dores. Eu agora tenho que me poupar bem mais em termos físicos, mas continuo me esforçando para perceber oportunidades para desenvolver e aplicar os dons que Deus me deu. Que Ele possa ajudar a todos nós a discernir quando o gastarse lhe agrada e a ter paz quando o pouparse se tornar necessário.

Ah sim! A dupla “Vou mais Fico” e a poesia “Memórias” falam sobre o fim deste período, quando já estava no caminho de volta para a paz de espírito. Quando ainda estava aprendendo que a serenidade intelectual e emocional, que Paulo descreve para os Filipenses não é algo automático e perpétuo (pelo menos não nesta terra)… Quando fui forçada a mesclar gratidão e súplica num momento em que as duas pareciam se excluir, e a confiar que o Senhor, realmente, continuava perto

… Perto está o Senhor. Não andeis ansiosos de coisa alguma;
em tudo, porém, sejam conhecidas diante de Deus as vossas petições,
pela oração e pela súplica, com ações de graça.
E a paz de Deus, que excede todo o entendimento,
guardará os vossos corações e as vossas mentes em Cristo Jesus.

Filipenses 4.5-7

3 Comentários a “EU ME POUPAREI, OU ME GASTAREI?”

  1. Suenia disse:

    Querida Betty,
    Pode ter certeza de que você tem servido a Deus ao gastar-se em escrever textos tão pertinentes e edificantes. Como é importante ver com clareza o que Deus espera de nós a cada momento, lembrando-nos sempre que seus propósitos muitas vezes são contrários àquilo que entendemos ser o caminho certo. Deus não só nos ensina a servir como a ser servidos quando estamos necessitados de ajuda. Que ele nos dê sabedoria para honrá-lo em toda e qualquer circustância.
    Gde bjo,
    Suenia

  2. Adélcia disse:

    Penso que já fui Valdete ( meia boca, pois poderia ter feito mais e melhor) e sinto que o “ser Isabel” está me rondando. Confesso que essa idéia me atemoriza, de certa forma, pois minha mente está na contramão do meu físico ou talvez não tenha aprendido a descansar em Deus e ser feliz em toda e qualquer circunstância .
    Obrigada,Betty, pelo texto lindo e edificante !
    Um grande abraço
    Adélcia

  3. betty disse:

    Obrigada pelas palavras encorajadoras, Adélcia. Dona Valdete (minha sogra) agora tem 90 anos e mora comigo. Ela teve que aprender, também, a ser a pessoa sendo cuidada e, não mais, a cuidadora. Deus tem dado forças e sabedoria a ela para demonstrar paciência e contentamento diariamente. Evangeliza e abençoa as pessoas que cuidam dela – a fisioterapeuta, as ajudantes na casa, os seus médicos – e também familiares por telefone e skype, as pessoas da igreja. Quando não consegue dormir, passa horas lendo a Bíblia e orando pelas pessoas do passado (ainda vivos) e do presente, conversando com Deus sobre tudo que ela sabe das suas necessidades. É uma senhora muito especial. Que você e eu possamos ser assim também. 🙂 Abs, Betty

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