Crônicas do Cotidiano

A TV na sala estava ligada. Estava sintonizada dia e noite, ultimamente, nos inquéritos parlamentares do governo. Repórteres e políticos se revezavam na tela prendendo a atenção de telespectadores, perplexos e confusos, querendo ser informados da crescente crise política.

—Eu deveria aprender a fazer crochê, pensou Isabel, —para ter as mãos ocupadas enquanto assisto. Não acho mais roupa para remendar ou botão para pregar. Ah, já sei, vou buscar as fotos do casamento de Tiago para arrumar no álbum.

Enquanto separava as fotos, deputados e senadores avaliavam requerimentos e discutiam procedimentos para mais uma sessão da CPI. Diariamente apareciam mais depoimentos, mais acusações, mais quebras de sigilo, mais malas de dinheiro de pessoas que haviam trocado seus ideais por reais (ou dólares)! O pior de tudo era que, entre as pessoas que carregavam estas malas, estavam algumas rotuladas como evangélicas. Ontem mesmo havia saído uma notícia dizendo que igrejas seriam o alvo de futuras operações da Polícia Federal no seu “combate à corrupção”.[1] Que vergonha!

O telefone tocou. —Dona ‘Bel?
—Olá, Tânia. Tudo bem? Quer falar com sua mãe?[2]
—É com a senhora mesmo. É porque a professora falou pra gente procurar matérias sobre a corrupção na política e recortar palavras e expressões sobre (deixe eu ler o que tem no caderno) “comportamento ético e justo”. Tipo certo e errado, verdade e mentira, coisas boas e ruins do governo. O pai do João, do meu grupo, é catador de papel e nos deu um monte de jornais. Quero saber se a senhora pode nos mandar algumas revistas pela mãe. Posso vir também com Mariana na sexta-feira para usar o computador? A gente tem que organizar as palavras em ordem alfabética e a senhora disse que ia me mostrar como fazer isto no Word.
—E o que vocês farão com as palavras recortadas então?
—Colar em cima.
—Podem vir.
—A professora vai dar chocolate a todo mundo mas o grupo que conseguir mais palavras e fizer mais bem feito vai ganhar um prêmio especial. A última vez os vencedores foram para o planetário e pro McDonald’s!

Após desligar, a mente de Isabel começou, involuntariamente, a registrar as palavras que lia e ouvia. Era impressionante como o vocabulário usado pela mídia refletia o anseio dos cidadãos para descobrirem a VERDADE. Procuravam governantes e investigadores em cujas palavras pudessem confiar. Cujo sim fosse sim e o não fosse não.[3] Que cumprissem o que prometeram. Cujo interesse no bem-estar do cidadão fosse sincero, sem visar benefício próprio. Assim, nesta hora de crise política, as palavras que surgiam para denunciar o contraste entre a conjuntura real e a situação ideal refletiam uma perspectiva muito parecida com a bíblica, com termos ligados à expectativa de transparência e integridade.

Naquela noite, compartilhou seus pensamentos com a família. Além de Neto, Glória e Gabriel[4], estavam visitando também os avós.
—Quantas palavras será que elas vão juntar? perguntou Vô Jaime.
—É capaz de ser mais de que cem, aventurou Vó Valdete.
—Garanto que vai ter extorsão e suborno na lista delas.
—É bem provável.
—Vô, qual a diferença entre extorsão e suborno, se existe? perguntou Gabriel.
—Mmm… Existe sim. Vamos ver se sei explicar. Você como estagiário talvez ainda não note estas coisas. Mas pode ter certeza que quando chegar a um cargo mais alto vai se defrontar com alguma extorsão. Extorsão é quando uma autoridade exige algo de você para lhe garantir aquilo que já é do seu direito. Suborno é quando você oferece vantagens ou dinheiro ou benefícios a alguém para facilitar a sua própria existência ou para dificultar a vida da sua competição. Um crente nunca deve ser subornado ou subornar.
—E crente pode ser extorquido?
—Claro. Imagine o motorista de um caminhão com carne refrigerada. A polícia lhe pára na estrada e inventa algo para que não possa continuar. Por mais que ele tente mostrar que está tudo OK, eles não arredam pé. Ele entra na lanchonete ao lado e já está imaginando o mau cheiro da carga apodrecida quando um camarada ali compartilha que conhece um dos guardas e que, por 200 reais, conseguirá a liberação. Ele tem certeza que não tem nada ilegal com sua carga e deixa o homem intermediar. Ele sofreu uma extorsão.[5]
—Ainda assim, é preciso ter muito cuidado, adicionou Neto. —Porque, se continuar passando pelo mesmo posto, ele já vai saber que aqueles guardas gostam de ter a “mão molhada” e assim podem deixar passar uma carga sem documentação. Passar de vítima de extorsão para agente de suborno pode ser algo quase imperceptível e creio que isso acontece com os nossos governantes. É bem possível que muitas destas pessoas que estão sendo acusadas nestes inquéritos começam a vida política cheias de ideais e planos para mudar o mundo. Nem todos prometem o céu só para se elegerem e “enfiar a mão no pote”. Quase sem perceber, cedem em pequenas áreas por pensar que vão alcançar um bem maior. Depois ficam tão enredados que abrem mão do sonho para protegerem a si ou às suas famílias das conseqüências dos seus erros. Alguns começam a gostar de vida mansa, do dinheiro fácil…

—Será que alguém pode ser político e crente ao mesmo tempo? ponderou Glória.

—Claro! Respondeu seu pai. Temos o exemplo, muitíssimo interessante, de Daniel. Ele sobreviveu vários reinados, sempre em altas posições políticas. No último, a reputação dele era tão boa que o rei o colocou como um dos três a quem 120 sátrapas tinham que prestar contas. Isto porque o rei não queria sofrer prejuízo financeiro. Os políticos daquela época eram bem parecidos com os nossos. Cada um queria tirar o seu pedaço. Quando viram que Daniel jogava areia nos seus planos, resolveram tirá-lo do caminho e vasculharam a sua vida, achando que sua integridade era apenas aparente. Descobriram que ele era fiel—nem desonesto ou negligente. Estava comprometido com Deus em tudo que dizia e fazia! Daniel nunca se desviou do caminho que propôs para si mesmo no início da sua carreira política, de não contaminar-se.[6]

—Ele cultivava seu relacionamento com Deus, completou Vovó. —Todo dia, se ajoelhava, orava e dava graças. Não estava só repetindo rezas. Suplicava pleiteando problemas e causas específicas. Conversava com Deus. Aí temos pelo menos um dos segredos da integridade dele. Não buscava a Deus só na crise!
Gabriel continuou, –Daniel também procurou o apoio dos seus três amigos e vice-versa. Pai, passe a sua Bíblia para cá. E a pipoca também…. Escutem. Então Daniel foi para casa, e fez saber o caso a Hananias, Misael e Azarias, seus companheiros, para que pedissem misericórdia ao Deus do céu, … para que Daniel e seus companheiros não perecessem.[7] Conversaram e oraram juntos! Os nossos políticos evangélicos deveriam fazer a mesma coisa. Se unirem e entregarem os desafios a Deus em vez de dar um jeitinho aqui e ali, sem considerar as leis dele.

Na próxima sexta-feira, Isabel abriu a porta para duas meninas animadas, que traziam uma caixinha cheia de palavras recortadas.
—Olhe, eu tenho que sair por algumas horas. Vou ligar o computador e vocês vão digitando as palavras. Já vou deixar o dicionário na tela para que verifiquem se as palavras estão corretas. Quando eu chegar, a gente coloca em ordem alfabética e imprime.
Na volta de Isabel, Tânia veio alegre. —Dona ‘Bel. Esqueci de dizer que se escrever palavras antônimas lado a lado, elas valem o dobro. E a gente viu que os antônimos no dicionário e já copiamos.
—Bem pensado!
Algum tempo depois, Isabel viu-se diante de quatro folhas de palavras recortadas e coladas em ordem alfabética com vários antônimos escritos ao lado.
—O que foi que vocês duas aprenderam com esta tarefa?
—Aprendi a digitar no computador, sorriu Mariana.
—E eu sei usar o dicionário e como organizar em ordem alfabética, complementou Tânia.
—E vocês descobriram o significado de muitas palavras novas, não foi? Mas o que mais?
As duas meninas se entreolharam e Tânia falou. —Acho que a gente aprendeu que político não presta. Meu Vô diz que é tudo “gato do mesmo saco”. Mentiroso e ladrão!
—Meu pai está muito triste porque achava que a nossa vida ia melhorar com este governo. Ele dizia que as filas no posto médico iriam acabar e que ia ter computadores para os alunos na nossa escola. Agora ele fala que não dá para confiar mais em ninguém depois desta roubalheira. Mas minha mãe está freqüentando a igreja da Tânia (e eu também) e ela falou para ele que a Bíblia ensina que todo mundo nasce com pecado. Por isso, quer se aproveitar dos outros. Mas quando a gente acredita que Jesus morreu por nossos pecados, ele muda o nosso coração.
—Pastor João disse que Deus coloca amor no nosso coração e, então, a gente aprende a ser honesta para não prejudicar ninguém mentindo ou roubando.[8]
—E ele mandou ler a Bíblia e orar todo dia para Deus nos ensinar o que é certo fazer.
—Disse para orar pelos políticos e a gente teve que repetir cinco vezes onde Deus manda isto. Decorei. É 1 Timóteo 2.1 e 2. Passaram uma caixinha como esta e tiramos nomes para orar.
—Para Deus dar sabedoria a eles para tudo não acabar em pizza. Tânia! A gente nem colocou esta palavra na nossa lista!
—Agora não podemos mexer mais. Só quero ver qual vai ser o nosso prêmio! Valeu a ajuda, D. ‘Bel!
—O prazer foi meu, meninas. Quem sabe, quando eu for velhinha, vou abrir o jornal e ver os nomes das duas estampados lá, lutando por um governo ético e justo. Se vocês se lembrarem do que a mãe de Mariana e o pastor falaram, tenho certeza de que vou sentir orgulho.
As meninas riram, surpresas. Mariana aceitou o desafio. —Eu já resolvi ser professora de crianças pobres mas posso tentar ser a Secretária de Educação. Tânia, você vai ser vereadora. Vai lutar por nossas escolas…
— Para terem aulas de computação.
— E bibliotecas cheias de livros.
— E gente para consertar o banheiro quando a descarga quebra.
— E classes menores para a professora não precisar gritar…
— Todo mundo vai falar bem da gente!
— E do seu Deus, meninas! Completou Isabel. — E do seu Deus!

Sorrindo, saíram juntas, dispostas a serem instrumentos de Deus para um futuro melhor.

[1] Estado de São Paulo, Nacional, 22 de agosto de 2005
[2] Áurea, ajudante de Isabel nas tarefas domesticas.
[3] Mateus 5.37.
[4] Marido e filhos de Isabel
[5] Entretanto, nem sempre é preciso ou correto ceder a extorsão.
[6] Daniel 1.8, 6.1-4.
[7] Daniel 2.17, 18
[8] Efésios 4.17-31.

SUGESTÕES PARA MEDITAÇÃO E/OU ATIVIDADES
1. Os mandamentos contra mentir e roubar encontram-se na segunda parte da lei moral de Deus (Êxodo 20.15, 16). Jesus resumiu esta parte dizendo “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22.39), citando algo revelado mil anos antes. Leia Levítico 19.9-18 e converse no grupo sobre as orientações divinas tanto para aqueles que têm poder e posses quanto para aqueles que não as têm (todos nós temos algo para compartilhar, ainda que seja um sorriso ou um abraço carinhoso, ou um pequeno gesto de solidariedade). Quem na sua comunidade se enquadra nas categorias de pobre, estrangeiro, próximo, jornaleiro (não é a pessoa que entrega o jornal toda manhã!), surdo, cego, mexeriqueiro, irmão, grande? Na sua igreja? Na sua rua?
2. Costume de casa vai à praça. Você ora para que seus filhos, netos e sobrinhos sejam exemplos de vida como adultos? Separe uma semana para observar os hábitos e atitudes que está transmitindo a eles. O que você faz: ao receber troco a mais na padaria; quando o guarda lhe multar no trânsito; no trato com o funcionário da repartição que está apenas fazendo o seu dever; ao arranhar um carro estacionado, quando o dono está ausente; quando um irmão ou irmã (ou filho) lhe admoestar por um pecado real; quando viu que fez uma crítica sem amor…? Se reconhecer áreas em que eles não devem lhe imitar, procure ajuda e orientação na Palavra dAquele que lhe criou, e nas palavras escritas ou faladas de irmãos ou irmãs sábias. Corrija o erro. Peça perdão. Ensina a criança no caminho em que deve andar, e ainda quando for velho não se desviará dele (Provérbios 22.6).

Este artigo foi publicado em 28 de março, 2006. Está arquivado sob Artigos Publicados, Crônicas de Isabel, Crianças, Daniel, Honestidade. Você pode acompanhar os comentários a este artigo através do feed RSS 2.0. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback do seu próprio site.