A Menina e o Livro

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Não se esqueçam de fazer o bem e de repartir com os outros o que vocês têm, pois de tais sacrifícios Deus se agrada. –Hebreus 13.16 NVI

—Mãe, comprei um livro pra senhora.
Isabel ficou surpresa. Seu filho, Gabriel, acabara de chegar da Bienal do Livro. O que ele teria escolhido para ela?
—Eu me lembrei da vez que a senhora procurava as Crônicas de Nárnia e ninguém achou. Aí eu vi e comprei.
Isabel olhou atônita para o livrão que ele segurava. Era lindo! Parecia um volume de uma luxuosa enciclopédia.
—É muito bonito, balbuciou, enquanto começava a folhear as páginas.


—Olhe, tem ilustrações! São sete livros em um. E veja como capricharam. Todas as páginas são coloridas. É muito bonito, mesmo!
Mas, lá no íntimo, Isabel se sentia frustrada. O livro era bonito demais! Ela queria algo bem simples para emprestar para as crianças das senhoras que discipulava.[2] Desejava desenvolver o hábito da leitura nelas. Mas nenhuma mãe teria coragem de deixar seu filho a sós com esse tesouro. E quanto não teria custado? De certo modo, pensou, era um desperdício, um enorme desperdício!
—Fique quieta, falou consigo mesma. —Dê graças a Deus que seu filho presta atenção às suas vontades. Se você reclamar, vai estragar tudo! Se Deus quiser, vai servir para seus futuros netos algum dia. Isto é, se ainda estiverem lendo livros de papel. Hummm. Pare de ser pessimista! Nenhum aparelho eletrônico vai conseguir substituir meu colo e o prazer de compartilhar uma aventura comigo.

No dia seguinte, Isabel pegou novamente no livro. – Onde vou guardá-lo? pensou. Acho que vou colocá-lo na sala para dar um toque de classe, ao lado das enciclopédias e de outros volumes ilustrados. Melhor assim, juntando poeira mas embelezando o ambiente, do que guardado, pegando mofo. Mas ainda acho um desperdício… Enquanto isso, passou pela Áurea que trabalhava na cozinha.
– Olhe o que Gabriel me deu. Não é lindo?
Áurea concordou. –Realmente, Dona ‘Bel. Mas tem criança que lê tudo isto?
–Tem, Áurea. Esta série provavelmente já foi lida por milhões de crianças, e adultos também. É um “clássico”. Significa que algo é tão bem feito que pessoas de todos os lugares e de todos os tempos acham bonito e bom.
– A Tânia não iria conseguir não, afirmou Áurea, referindo-se à sua filha de 10 anos. Ela não gosta de ler.

Isabel sabia disso. Tânia cursava a quarta série de manhã e depois ia para sua casa esperar a mãe terminar o serviço. Era uma menina esperta e tirava boas notas na escola. Entretanto, não tinha vontade nenhuma de ler algo por conta própria. De vez em quando, Isabel tentara interessá-la nos livros usados que havia garimpado em vários lugares, já pensando nas crianças das senhoras que discipulava.
– Eu também não iria gostar deles, pensou de repente. – Parece que o povo só escreve sobre as tragédias do meio-ambiente e da pobreza. Tudo miséria e conscientização. Está acabando a floresta, a água, o ar… E a criança assustada fica encarregada de vigiar e lutar por seus direitos… Cadê a alegria, a aventura, a surpresa, o mistério…? Onde está o encanto de descobrir o significado das palavras e de transformá-las em veículos de pensamentos fantásticos…? Tenho que encontrar algo melhor! Então, teve uma idéia…
– Vou ler o livro para ela, como fazia com os nossos filhos quando eram pequenos.

No dia seguinte, chamou Tânia.
– Venha cá, princesa. Sente aqui ao meu lado. Você e eu vamos ler este livrão juntos.
Lá no íntimo, Tânia pensou. “Essa Dona ‘Bel é louca. Ninguém agüenta ler tanto assim!” Mas deu um largo sorriso e balançou a cabeça vigorosamente. “Vamos!”

Alguns dias depois, Gabriel chegou da faculdade e viu o livro na mesa.
– Hein, mãe, lendo sobre Nárnia?
Tou, e não tou.
– Como?
– Estou lendo com a Tânia. Todo dia, quando estou em casa, a gente separa uns quinze minutos pra iso.
– Beleza, mãe! Que idéia legal. Mas a senhora já não está sobrecarregada de serviços?
Tou. Mas é uma tentativa de estimular nela o gosto pela leitura. Quero que esta minha “netinha na fé” seja a primeira de muitos a desfrutar do livrão que você me deu.

Os dias iam passando. No início, Tânia falava pouco. Apenas escutava, seguindo o texto com os olhos. Isabel tentou relembrar e aplicar técnicas pedagógicas. Fazia perguntas sobre o que haviam lido e estimulava comentários.

Uma noite, Gabriel perguntou,
– E então, mãe. Como está indo a leitura com a Tânia?
– Não é como imaginei mas creio que esteja indo melhor ainda.
– Por que?
– A tradução do inglês é excelente mas o Lewis usou muitas palavras difíceis. Aparece cada uma! Normalmente, vou explicando o significado quando ocorre. Às vezes, pergunto o que ela acha que é e depois vou mostrando como pode adivinhar o sentido pelo contexto. De vez em quando eu também não sei. Aí disfarço, e abrimos o dicionário. Ela já está sabendo manuseá-lo.
– Mãezinha! A senhora disfarçando?!
– Mas ela já descobriu. Ontem eu tava com um pouco de pressa e não expliquei o sentido de uma palavra. Continuei lendo normalmente.
– Qual era?
Menoscabo.
– Também não sei o que é isso.
– Uns quatro parágrafos adiante, parei para explicar o que significava impetuosidade. Ela então olhou para mim com um jeito malandro e perguntou:
– E, Dona ‘Bel, o que é menoscabo? Confessei que também não sabia, e fomos até o dicionário.
– E o que é?
Desprezo.
– Será que ela vai usar isto alguma vez na vida?
– Talvez não, mas tem muitas outras palavras e conceitos que lhe serão úteis. Mas o que me impressiona é que ela gravou a palavra desconhecida e teve a iniciativa de perguntar. Está descobrindo que é gostoso aprender. E noto que ela fica desapontada nos dias em que não posso ler com ela. Está curiosa para saber o que vai acontecer com as crianças no capítulo seguinte. E eu também.

Assim, várias vezes por semana, as duas acompanhavam as aventuras de Polly e Digory. Tânia se esforçava para distinguir o real do imaginário.
– Dona ‘Bel? Eu tenho uma pergunta.
– Pode falar.
– Eu fiquei pensando se esta história é de verdade e se Polly e Digory ainda estão vivos?
– Não, ela não é de verdade. Mas uma parte dela poderia ter sido. E a outra parte não. Já olhamos no globo para ver onde fica Londres. Vimos as fotos do Neto e eu na frente do Palácio de Buckingham, com os portões todo dourados. São lugares verdadeiros. Quem sabe, um dia você vai poder visitá-los.
– Aí vou de avião?
– Vai. Mas as pessoas vão parecer diferentes porque essa história acontece no passado. Nessa época, vestiam roupas iguais às figuras do livro e viviam em casas parecidas com as de Polly e Digory. Usavam velas e lampiões para iluminação…
– E andavam de… Como é mesmo?… Ca… ca-bri-o-lés puxados por cavalos.
– Agora lá é como aqui, com carros, eletricidade, computadores, calças jeans…
– Eu sei a parte que não é de verdade. É quando eles entram no túnel e vão para o bosque e os outros mundos. Eu já tava achando que aquilo era de mentirinha.
– A gente chama isto de faz-de-conta. Imaginação. Fantasia. O homem que escreveu o livro achou que seria interessante se ele inventasse lugares e seres diferentes. Você não concorda que as crianças do livro têm grandes aventuras?

Tânia balançou a cabeça. Era muita coisa para entender de uma vez só, mas ela estava gravando tudo. A sua curiosidade só aumentava. Logo os quinze minutos diários viraram meia hora, tantas eram as perguntas que surgiam com relação aos detalhes da leitura. Para respondê-las, Isabel abria outros livros e recorria à Internet. Comentou com Gabriel que não sabia quem estava aprendendo mais, se era ela ou a menina. Um dia, ele perguntou,
– O Leão já apareceu na história?
– Sim, e Ele acaba de criar o novo mundo de Nárnia. Tânia conseguiu visualizar, pouco a pouco, uma paisagem pintada apenas por palavras. “Vimos” surgir toda a natureza esverdeada com a relva, capim, arbustos e árvores. Depois, fomos olhar o nosso quintal para observar as várias tonalidades nos verdes das plantas lá, em meio ao colorido das flores, à leveza das borboletas e ao canto dos pássaros.
– Um mini-Nárnia, né? Que, por sua vez, é como o Jardim do Éden. Vai ser interessante observar se ela percebe o paralelo entre o Leão e Jesus.
– Realmente. Não é preciso entender a alegoria para apreciar o livro. Entretanto, vai ser uma excelente oportunidade para reforçar o que ela está aprendendo da Bíblia.
– Falou, mãe. Vou orar para que seu crescimento espiritual ainda ultrapasse o intelectual!

Mais ou menos um mês depois do início, Isabel teve que se ausentar durante dois dias seguidos. Ao voltar, abriu o livro na página em que haviam parado e começou a ler. Entretanto, notou que Tânia queria dizer algo.
—O que foi, Tânia?
Tânia entrelaçou os dedos e engoliu em seco.
– Dona ‘Bel, eu tenho uma coisa para confessar. Ontem eu peguei o livro e li duas páginas.
– Sozinha? E por que fez isso?
– Porque eu precisava saber o que ia acontecer. A senhora parou bem no meio do capítulo.
– É mesmo. Eu também preciso saber. Que tal você me contar?
Isabel ouviu com atenção, enquanto seus olhos percorriam as páginas para verificar se a menina havia compreendido o texto.
– Você entendeu tudinho! Mas tem umas palavras grandes aqui. Como é que você conseguiu?
– Adivinhei. E olhei no dicionário, duas vezes. A senhora não está zangada comigo?
– Sempre é bom saber que algo está certo antes de fazê-lo. Mas eu nunca proibi você de pegar no livro sem mim. Para dizer a verdade, eu estou muito, muito satisfeita. Acabo de descobrir algo muito especial. Algo que você nem percebeu ainda. Tânia, eu estou achando que você está gostando de ler!

O olhar incrédulo de Tânia transformou-se num alegre sorriso.
—É mesmo, Dona ‘Bel. Mas com jeito traquino, completou:
—Mas é só deste livro que eu gosto.
—Por enquanto, princesa… Por enquanto… Vamos contar para sua mãe?
—Vamos!
De mãos dadas, as duas partiram para a cozinha para compartilhar a boa notícia.

Elizabeth Zekveld Portela
Publicado na SAF em Revista, 4º Trimestre / 2004

[1] C.S. Lewis, As Crônicas de Nárnia (Martins Fontes, São Paulo, 2002). As Crônicas de Nárnia são histórias escritas de forma alegórica pelo conhecido filósofo e escritor inglês, C.S. Lewis. Várias crianças entram e saem de um mundo imaginário onde um Leão (que representa Jesus como Criador e também Salvador) interage com sua criação e luta contra o mal até vencê-lo por sua morte substitutiva e ressurreição. Têm sido considerado leitura obrigatória nos lares dos cristãos de fala inglesa durante pelo menos quatro décadas.

[2] Mães cristãs em uma comunidade carente vizinha. Algumas trabalham (ou trabalharam) na casa de Isabel.

SUGESTÕES PARA MEDITAÇÃO E/OU ATIVIDADES
1. Hebreus 13.16 fala em repartir com os outros o que temos pois Deus se agrada de tais sacrifícios. Também devemos ser generosos em dar e prontos a repartir (1Timóteo 6.18). No grego, repartir é uma variação da palavra koinonia. Nessa história, Isabel não podia dar o livro mas, em vez de deixá-lo encostado, compartilhou o seu conteúdo com uma criança, somando a isto seu próprio tempo, carinho e conhecimento. Examine a sua vida para verificar os objetos encostados ou pouco usados que poderiam ser repartidos no espírito da koinonia (instrumentos musicais, ferramentas, aparelhos elétricos e eletrônicos, computadores, móveis, veículos…). Lembre-se que o sacrifício inclui o risco de perdas ou danos.

2. Ao batizar seu filho na Igreja Presbiteriana, os pais prometem ensinar-lhe a ler para que venha a ler por si mesmo a Santa Escritura e fazer tudo possível para criá-lo na disciplina e correção do Senhor. Ciente de que a formação, tanto a acadêmica quanto a espiritual, depende muito da leitura e da qualidade daquilo que lê, avalie o conteúdo da leitura das suas crianças. Além das revistinhas das bancas, o que está comprando para seus filhos, sobrinhos e netos? Veja as orientações de Filipenses 4.8 sobre aquilo que devem pensar.

3. Procure lembrar-se de alguém que lia para você quando criança. Avalie o benefício disso e aproveite para agradecer-lhe. Há alguma criança que está gozando (ou que poderia gozar) do mesmo privilégio por meio de você?

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