Não Batam no MEU Ladrão!

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Amados, nunca procurem vingar-se, mas deixe com Deus a ira….
—Romanos 12.19 (NVI)

—Mãe, vimos um homem na garagem!
—O que?! Cadê ele?
Espantada, Isabel olhou as duas crianças que chegavam ofegantes, olhos arregalados.
—Já saiu. Ele pegou uma coisa do carro! A gente ‘tava brincando na sala. Aí ouvimos um barulho e vimos o homem indo embora. Ele não nos viu, não.
—Como ele era?
—Magro, respondeu Gabriel, de quatro anos.
—‘tava de calção e camiseta branca, disse Glorinha, a irmãzinha maior.
—Como a maioria dos homens desta cidade, pensou Isabel, que acabara de chegar em casa. O que será que ele queria no carro?

De repente seu coração disparou, sobressaltado.
—A minha bolsa! Com todos os meus documentos! Sem eles, não vou poder viajar!
—Josefa! Vem logo! Teve um ladrão aqui! Vou atrás dele! Fique com Glorinha e Gabriel.

—O que foi, mãe? Tiago, o filho de 12 anos, veio correndo.
—Um homem mexeu no meu carro. Vê logo se minha bolsa ainda está lá.
Tiago foi, enquanto Isabel correu até o portão. Avistou um vizinho na rua.
—O senhor viu alguém saindo da garagem?
—Vi, sim. Agorinha.
—A bolsa não está aí, mãe. E o lugar do extintor está vazio.
—Sr. Valdo, ele carregava uma bolsa?
— ‘tava com algo debaixo do braço, mas não vi o que era.
—O senhor o reconheceria?
—Acho que sim.
—Então vamos procurá-lo?

Assim saíram correndo, os três. Ao dobrarem a esquina, viram um jovem andando devagar, com um extintor de incêndio na mão.
—É ele!
Logo, aproximaram-se do moço. Suas roupas eram boas mas amassadas e sujas. Seus olhos avermelhados demoraram-se a fixar no rosto de Isabel, quando ela perguntou:
—E esse extintor?
—Me deram.
—E a bolsa que estava junto?
—Que bolsa?
—Eu quero a minha bolsa! Onde está? Passou pra alguém?
—Não sei do que está falando!

De repente, ele disparou pela rua. Isabel foi atrás, e Tiago também. Logo, notou que seu vizinho desistira. –Medroso! Pensou.
O homem tropeçou. Levantou-se com olhar feroz, a mão dentro do bolso.
—Vai sair gente furada daqui!
—E agora!? apavorou-se Isabel.

Tiago também meteu a mão no bolso e, estarrecida, Isabel ouviu o estalo de um canivete abrindo.
—Quem vai sair furado é você! A voz do seu filho começou grossa e terminou fina…
O homem olhou, mediu o garotão, e pôs-se a correr de novo, com ânimo redobrado.
—Não acredito que eu esteja realmente fazendo isto, pensou Isabel, espantada, enquanto perseguia gritando: “Ladrão! Pare o ladrão!”
–Pelo jeito, ele está desarmado. Obrigada, Pai! A gente nem pensa naquilo em que pode estar se metendo. Mas eu preciso dos meus documentos! Só não sei se a bolsa estava no carro…
O ladrão ia se distanciando. Porém, adiante, uns trabalhadores em uma construção pararam com os gritos que ouviam. Um deles pegou uma estaca e começou a batê-la no chão na frente do fugitivo. Logo, os outros o agarraram, esperando curiosos a chegada de Isabel e Tiago.
—O que foi que ele roubou?
—Aquele extintor e, talvez, minha bolsa.
—Não fiz nada! Vocês vão se dar mal se mexerem comigo! Minha irmã é promotora e vocês vão ver, vociferou o moço, ainda com a voz meio engrolada.
—Corra para casa e verifique se minha bolsa está no quarto, disse Isabel a Tiago. Ele saiu depressa, relutando perder a ação.

Enquanto voltavam, pessoas curiosas surgiam das casas e bares da rua. Alguém avisou:
—Já chamei a polícia!
Outro, um enorme barbudo, aproximou-se do suspeito. Disse um palavrão e, repentinamente, enfiou um soco na barriga do rapaz. Isabel estremeceu, mas ninguém mais parecia se comover. Horrorizada, observou um motoqueiro torcer o braço do ladrão. Percebeu que, de repente, havia despertado um instinto de vingança naquele amontoado de pessoas. Para eles, aquele ser, agora indefeso e vulnerável, encarnava todos os furtos, roubos e violências que já haviam sofrido. Começaram a xingá-lo e a cuspir na sua cara. Em poucos segundos, a multidão curiosa havia, não apenas condenado o ladrão, mas já estava se preparando para executar a sentença sem a mínima noção do que havia acontecido, nem do que havia sido roubado, ou de quem tinha sido… Só sabiam que se tratava de um ladrão …

Veio um chute rasteiro por trás. O moço cambaleou. Seu olhar, ao mesmo tempo apavorado e acusador, cruzou-se com o de Isabel.

—Pai, o que eu faço, orou Isabel. Está tudo errado!! Daqui a pouco, ele vai ser linchado, e eu nem sei se realmente roubou a minha bolsa! Tenho de fazer algo!

Olhos faiscando, postou-se diante do moço, braços abertos para trás. Furiosa, encarou o homem que já estava posicionado para esbofeteá-lo. Seu braço congelou no ar. Depois seu olhar continuou percorrendo os rostos da multidão. Tinha a impressão de estar vendo um filme em câmera lenta. Só que ela era a protagonista principal! Houve um silêncio imediato. Era impressionante. Todos olhavam a senhora alta, de rosto vermelho, que os enfrentava com uma coragem que nem ela sabia que tinha.

Isabel berrou a primeira coisa que lhe veio na cabeça.
Não batam no MEU ladrão! Ele é MEU!
Parada, desafiante, pensava: Que loucura! Quem sou eu contra essa gente toda?! Meu Deus, me ajude!
Novamente, fitou os rostos ao seu redor, desafiando, implorando, como se estivesse indagando… –Vocês já pensaram bem sobre o que estão fazendo?
Uma a uma, as pessoas desviaram o olhar. Ninguém contestou.

Isabel continuou. –Vou levá-lo de volta para minha casa. E vamos esperar pela polícia. O senhor dê licença, por favor.
Com a mão, indicou que queria que o motoqueiro soltasse o ladrão. Ele hesitou, mas, depois, obedeceu.
Ela pegou firme no braço do moço. –Vamos!

Não sobrara nenhuma resistência no ladrão. Murchara completamente. De certo, estava tentando compreender aquela mulher estranha, ao mesmo tempo sua acusadora e sua salvadora. Sentia como ela tremia enquanto caminhavam, ainda cercados por aqueles que, há pouco, ameaçavam destruí-lo. Mas o clima era diferente agora. O foco não estava mais em vingança mas em justiça—representada pela chegada da polícia. Virou o rosto para vê-la melhor. Sentindo isto, ela devolveu o olhar. Entendeu quando ele falou, baixinho
–Não roubei a sua bolsa.
Ela olhou para ele, atônita. Como deveria proceder neste caso? Respondeu, junto ao ouvido dele:
—Pode até ser. Já mandei verificar. Ainda assim, você entrou na minha garagem, abriu o meu carro e tirou meu extintor. Você continua sendo ladrão.

O carro da polícia chegou, sirenes ligadas e luzes piscando. Tiago e as crianças saíram da casa.
—Mãe, a sua bolsa está no quarto, sim. Glorinha e Gabriel dizem que este é o homem que viram.

Isabel foi prestar queixa na delegacia. Seu marido estava viajando e alguém da firma a acompanhou. Lá, descobriu que seu ladrão se chamava Roberto e que já era conhecido da polícia. Era membro de uma família renomada na cidade que, por causa do vício, já não agüentava mais tê-lo por perto. Havia alugado uma pequena casa para ele, perto da casa de Isabel e Neto. Recebia uma mesada mas roubava para sustentar o vício. Isabel anotou o nome e o endereço dele, assinou a queixa e foi para casa, incomodada com o conselho do atendente. –Ó, senhora. Cuidado. Ele vai sair daqui a uns dias e pode querer se vingar.

Seus filhos esperavam, cheios de perguntas, impressionados com o guarda, enviado pela firma do pai, como medida preventiva.
–Mãe, fiquei muito triste quando eles botaram o homem naquele carro. Nem tinha banco! Eles vão bater nele?
–E ele nem levou a sua bolsa! Foi só o “restintô”.

Tiago, entretanto, lembrou-se de outra cena.
–Vocês não viram tudo. Ele é mau! Disse que tinha uma faca e que ia furar Mamãe! Eu protegi ela com meu canivete.

Isabel abraçou seu filhão protetor. Pensou, “E você também não sabe da metade!” mas disse:
–Você foi muito corajoso. Graças a Deus, não aconteceu nenhuma desgraça conosco. Mas eu entendo o que Glorinha e Gabriel sentem. É muito triste ver um ser humano algemado e na cadeia. Ele precisa tanto de conhecer a Deus!…

Foi uma oportunidade para conversarem sobre os perigos e as conseqüências dos vícios e também a respeito da diferença entre vingança e justiça. Depois contaram e re-contaram a história para Papai e muitos amigos e parentes.
Algumas pessoas brincavam:
–Hein, Isabel, como vai SEU ladrão?
Outras, preocupadas, davam admoestações e conselhos sobre resistência e vigilância.

Durante dias, Isabel ficou remoendo os eventos. Comprou uma Bíblia para o Roberto, chegando até a escrever a dedicatória. Mas como entregá-la? A casa dele sempre parecia abandonada. E ainda se ele estivesse lá, como iria abordá-lo? E a questão da vingança? Como seriam as suas lembranças daqueles momentos, quando a mente tinha estado tão embotada pelas drogas? Finalmente, resolveu reservá-la para presente de Natal.

Poucas semanas depois, a campainha tocou.
–Mamãe, é o seu ladrão!
Isabel saiu para falar com ele, enquanto Tiago correu para o telefone.
–Tio, vamos nos atrasar para sua festa porque Mamãe está lá na frente com o ladrão!
–Fique de olho nela! Vá me falando o que está acontecendo.
–Ela entrou agora. Diz que vai pegar a Bíblia que comprou para ele. Ele também quer dinheiro emprestado. Mas é só pouquinho. Agora está falando com ele de novo… Ele não parece bravo, não. Acho que não tem nenhuma arma. Glorinha, sai de junto da janela!… Mamãe abriu a Bíblia e ele está escutando tudo que ela está falando. Está balançando a cabeça… Está sorrindo, um pouquinho… Ela também. Agora, ele está indo embora e Mamãe está entrando. Ela disse para eu desligar e ir trancar a casa. Daqui a pouco ela conta tudo pessoalmente… Tchau, Tio.

–O que você falou tanto com ele, Mãe?
–Eu sei que a única maneira dele se endireitar é ter Jesus como seu Salvador. Aí, fui mostrar algumas coisas que eu havia marcado, já que Deus fala conosco pela Bíblia. E disse que estava orando por ele. Ele escutou, mas acho que estava drogado.
–Você estava com medo, Mamãe?
–Estava, sim. Mas eu precisava aproveitar a oportunidade que Deus estava me dando. Sabia que Ele ‘tava me vendo. Mas foi boa idéia você ligar para seu tio. Pude contar com sua proteção novamente. Agora vamos correndo, para Tio Daniel ter a certeza de que estamos bem…

Elizabeth Zekveld Portela
Publicado na SAF em Revista, 1º Trimestre / 2004

Essa crônica é baseada em acontecimentos reais. Pouco tempo depois, Isabel e Neto se mudaram para outra cidade. Nunca mais souberam do destino do “Roberto”.

Sugestões para meditação e/ou atividades

  1. Infelizmente, o “ladrão de Isabel” lembra a quase todos nós de alguma ocasião em que tivemos que lidar com algo parecido, muitas vezes, com sofrimento e prejuízo bem maior. Quase sempre, também, ficamos com dúvidas sobre se reagimos de maneira certa. Lutamos com sentimentos conflitantes de perda, insegurança, medo, ódio, pena… Procure conversar com alguém sobre isso.
  2. Leia Romanos 12.17-21 e avalie se (e quando) Isabel conseguiu seguir a orientação de Paulo.
  3. A pequena Glorinha se preocupou com o fato do ladrão sofrer prisão quando, afinal, havia roubado apenas um extintor. Isabel estaria tornando mal por mal ao prestar queixa (Romanos 12.17)? Que luz Romanos 13.4 traz a respeito disto?
  4. A possível vingança daquele que é levado à justiça deve afetar as nossas ações? Até que ponto devemos nos submeter à “tirania do medo”?
  5. Verifique quem são as pessoas responsáveis pela segurança na sua cidade. Procure orar por elas regularmente, de acordo com 1 Timóteo 2.1-4.

4 Comentários a “Não Batam no MEU Ladrão!”

  1. Tânia Cassiano disse:

    Betty,
    É isso mesmo. O ladrão é “nosso”!
    Acho horrível o linchamento. Acredito que pessoas que reagem desta
    maneira, com certeza nos lincharão, se acharem que devem.
    Isabel é maravilhosa, eu imagino a cena, brigando feito uma leoa, pelos
    seus filhotes, é isso aí, não devemos perder a capacidade de nos indignar contra as injusticas. Lí os textos que você sugeriu, Isabel agiu
    corretamente e foi generosa!
    Me falta, também, essa capacidade de no momento certo, falar sobre
    Jesus, me dá uma angústia! Eu não podia ter falado pro meu ladrão?
    Se bem que depois fiquei pensando nele e pedindo que Deus tomasse
    conta dele (mas não sou tão boazinha, bem que tive raiva. Mas depois passou). Um abraço, Tânia

  2. Denise disse:

    Eu estava pesquisando pra minha faculdade sobre a violencia e as crianças, quando deparei com esta crônica. E acabei me emocionando, a situação é realmente perigosa, si olharmos pelo fato ocorrido.As pessoas que servem o mau (o ladrão)são realmente perigosas, mas o que me comoveu foi a forma com que a vitima ao ver o sofrimento do ladrão, enchergou apenas um homem que precisava da ajuda de Deus, e ela mesma poderia ser a pessoa indicada para ajudar aquele homem. Eu creio na proteção, na orientação, na recompensa divina. Podemos sim tocar o coração de um ser humano através de Deus. Pela nossa fé. Devemos praticar a nossa fé e nos fortalecer a cada dia.

  3. Luan Douglas disse:

    Bela crônica, mas esperava um desfexo mais interessante.

    mas ainda sim uma boa crônica. =)

  4. betty disse:

    Querida Denise:
    Fui aprovar um comentário sobre esta cronica hoje quando deparei com o seu, como nunca tendo sido aprovado. Percebo que não vi naquela época, nos meus e-mails. Entretanto, hoje foi “aprovado” e o original entrou no meu e-mail novamente. Apreciei! Espero que você já esteja bem encaminhada para terminar seu curso de faculdade. Um grande abraço, de Betty Portela.

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