Uma Herança Espiritual—Parte 3

Crônicas do Cotidiano > Uma Herança Espiritual—Parte 3

Legado de um Avô

Continuando na linha de pensamento da postagem anterior, sobre “herança espiritual”, quero compartilhar outra coisa que encontrei olhando os papéis e objetos guardados como recordações especiais do passado—desta vez relacionada com o legado do meu pai a um dos seus netos.

Túmulo dos meus pais em Lindsay, Ontário, Cánada

Túmulo dos meus pais em Lindsay, Ontário, Cánada

É um envelope com uma carta que foi postada para mim, enviada por nosso filho do meio quando meu pai faleceu no fim de dezembro de 2002—há quase seis anos. Já existia e-mail na época, mas parece que ele sentia que algo escrito a mão teria mais significado do que uma correspondência virtual (e acabou sendo mais duradouro também). Creio que preciso explicar um pouco do contexto colocando algumas informações meio desconexas para que possam entender os detalhes dessa carta.

Os que têm acompanhado minhas postagens, sabem que sou canadense (de origem holandesa) e moro no Brasil, com meu marido pernambucano, há 34 anos—os últimos 16 em São Paulo. Minha mãe faleceu em 1988. Meu pai continuou residindo no Canadá, mas frequentemente visitava minha irmã, no estado de Washington, nos Estados Unidos, por períodos de vários meses.

O filho que escreveu a carta passou dois períodos nos Estados Unidos. A primeira por cinco meses, na casa dos seus tios (Nellie e Chris), enquanto no ensino médio. Foi durante esta primeira estadia que ele conheceu melhor o avô dele, que também chegou para passar uma de suas temporadas na mesma casa. (Minha irmã e eu promovemos o nosso próprio intercâmbio estudantil—nós tivemos o privilégio de ficar com três filhas deles em épocas diferentes, por um semestre escolar. E eles ficaram com os quatro nossos, também alternadamente).

A segunda vez que meu filho foi aos Estados Unidos, ele permaneceu por um ano, fazendo o Instituto Bíblico do The Master’s College em Los Angeles, localizado a três horas de vôo da casa da tia. A minha filha, sua irmã, estava na mesma faculdade, estudando Aconselhamento Bíblico. Seu irmão caçula estava morando com a tia, cursando o penúltimo ano do ensino médio e o mais velho também estava na costa oeste do continente americano, mas no Canadá, a uma distância de quatros horas de carro. Estavam todos distantes do Brasil. Foi uma ocasião em que ficamos prematuramente “sem filhos”, com a casa vazia.

Meu pai morava bem longe—perto de Toronto, na província de Ontário, a quatro horas de vôo. No dia 29 de dezembro de 2002, um dos meus três irmãos foi visitá-lo e o encontrou ao lado da cama, já falecido, depois de um ataque fulminante do coração. Faltavam quinze dias para ele completar 75 anos.

Quando meu pai faleceu, meu marido e eu estávamos passando o Natal de 2002 em Recife com meus sogros e outros parentes. E nossos quatro filhos estavam todos reunidos na casa da Tia Nellie e do Tio Chris por causa das férias de Natal e fim-de-ano. Por falta de dinheiro e de vagas nos aviões (era um dos dias mais difíceis e mais caros do ano para conseguir vôos), a família reunida lá escolheu alguns representantes entre si para voar para Toronto. Minha irmã, meu cunhado, minha filha e minha sobrinha. Os outros ficaram para trás, inclusive nossos três filhos.

Nossos Quatro Filhos em Tacoma, Washington, Natal de 2002
Atrás: David Portela, Charissa e Karen Lensch, Grace e Daniel Portela
Na Frente: Darius Portela e Ben Lensch

Eu não pude ir ao enterro. Estava doente, impossibilitada de viajar, lutando contra uma infecção. E havia deixado o meu passaporte em São Paulo. Meus irmãos sugeriram que escrevesse o eulogy (uma curta biografia laudatória a respeito do meu pai) para ser lido no enterro (pode ser visto aqui). E foi com isto que me ocupei no primeiro dia de 2003, sob os cuidados carinhosos de Mamãe na minha tristeza, enquanto me recuperava, e enquanto Solano e Papai representaram a família no encontro anual das várias gerações dos Portelas presentes na cidade.

Minha filha passou três dias participando do velório e do enterro, chegando a conhecer muitos parentes até então desconhecidos. Também foi com seus tios e primos mais velhos para a casa do meu pai, para iniciar a divisão dos seus poucos pertences (em sua maioria, livros teológicos) enquanto estivessem presentes aqueles que moravam distantes. Lá, enquanto as senhoras passavam pela cozinha e o quarto, e os homens olhavam os livros e as ferramentas, Grace e as outras primas se encarregaram de dividir o conteúdo dos álbuns fotográficos, para devolver a cada filho e neto as fotos que seu avô guardara deles.

É a estas fotos que meu filho se refere na carta que se segue. Ele tinha 18 anos na época e nela ele descreve o legado que percebe ter sido deixado para ele pelo seu avô Gilbert (que ele chamava, carinhosamente de Opa, utilizando o nome familiar holandês). Não houve um legado financeiro, mas um precioso exemplo como servo de Deus. Meu filho já é formado agora, e está casado, recebedor das abundantes bênçãos de Deus. Pela misericórdia divina, ele e seus irmãos continuam trilhando o caminho desbravado pelos avós e pai que cita como referenciais, como pode ser verificado no blog que fazem em conjunto.

Compartilho, assim, mais um pedaço de minha intimidade, transcrevendo a carta recebida, pois me é muito preciosa e fala ao meu coração até hoje;

04 de janeiro de 2003

Mãe querida:
É mais ou menos uma hora da madrugada aqui em Tacoma. Acabo de olhar as coisas que Grace trouxe do enterro de Opa. Eu o amava, Mãe. De verdade. E eu sei que ele também me amava. Eu já sabia, e agora tenho ainda mais certeza depois de olhar todas as fotos que ele guardava de mim. Me fizeram pensar… Aposto que ele olhava muito estas fotos, e sei que ele orava muito por mim..

Aqui estou eu, sentado na minha cama, chorando pela primeira vez desde que recebemos as notícias da sua morte. Esta é uma experiência muito diferente para mim. Eu nunca tive alguém tão próximo de nós morrer. Eu era tão pequeno quando Oma morreu e, assim não há comparação com a perda que sinto agora. Surgem emoções em mim que nunca antes foram despertadas. Nunca senti perda tão grande.  Desconfio que seja normal alguém se sentir como se devesse ter conhecido alguém bem melhor, ou feito algo para aquela pessoa, antes do seu falecimento. Ainda assim, é um sentimento que nunca antes experimentei.

Minhas lembranças de Opa são primariamente restritas àquelas semanas que gastei com ele quando ele veio visitar Tia Nellie e Tio Chris em Tacoma durante a minha estadia com eles há dois anos e meio. Lembro-me da sua risada, como era forte e, ao mesmo tempo, alegre e sincera. Lembro-me de ensinar-lhe a dar “high-fives” às pessoas (ele provavelmente achava aquilo um absurdo). (Nota de Betty: “high five” significa tocar as mãos no alto, quando uma pessoa mantém a palma da mão na vertical e a outra bate. No Brasil dizem “Toca aqui”)

Mais uma coisa que sempre lembrarei é ouvi-lo assobiando. Era tão lindo e sempre era um hino. A gente podia ouvi-lo do outro lado da casa. Amava escutá-lo assobiando. Creio que era a sua maneira de demonstrar a sua alegria no Senhor.

Outra recordação que tenho de Opa é dele sentado na sala de estar de Tio Chris e Tia Nellie mostrando fotos de Oma e contando sobre a história deles para mim. Como gostaria de lembrar mais detalhes daquilo que ele falou… Ele sentia falta dela. Estava na cara. Estou feliz que agora estão juntos novamente.

Sei que está sendo difícil para você, Mamãe, mas percebo Deus trabalhando através disto. A melhor maneira que posso tentar lhe consolar é dizendo como Deus está usando isto na minha vida. Há tanto que eu preciso aprender ainda, mãe. Se for da vontade de Deus, eu ainda terei bastante tempo de vida, mas sei que nos próximos anos serei derrubado muitas vezes. E será nestes momentos, quando minha fé estiver sendo abalada, que eu terei a oportunidade de olhar os exemplos que me rodearam. E lá estará Opa, em pé, com dignidade, um guerreiro por Deus, que combateu o bom combate, e venceu! Inabalável na sua fé, sólido na sua teologia, com ambos os pés plantados firmemente em Cristo. Sou abençoado em ter tantos homens valorosos ao meu redor: meu pai, Vovô Jairo e Opa. Homens que ousam defender aquilo em que crêem.

E assim, já agora, quando Cristo acaba de me tomar pela mão para me conduzir pelo caminho estreito, quando Deus me ajuda a carregar o meu fardo, continuo honrando o legado que me foi deixado por estes grandes homens de Deus. A morte de Opa tem sido difícil agüentar, ainda mais para a senhora. Mas conforte-se nisto: a vida dele se destaca como exemplo para muitos, e com muita intensidade para mim. Um farol que brilhou, erguido na rocha, proclamando o poder de Jesus.

Eu amava Opa, e espero avidamente reencontrá-lo. Ele foi um grande homem, e pelo pouco que eu conhecia dele, sei que ele queria glorificar Deus em tudo, até na sua morte. Portanto, glória a Deus.

Seu filho amoroso,
Daniel

Sei que é possível que nem todos os meus leitores tenham uma herança de várias gerações passadas que trilharam os caminhos do Senhor. Mas todos podem começar, ainda que seja hoje, a entregar sua vida a Deus, pedindo perdão por seus pecados e procurando seguir os princípios contidos na Bíblia. Como pais, como avós ou tios… Assim, mesmo que não tenham antepassados cristãos, poderão desfrutar do privilégio de ser o primeiro representante de sucessivas gerações sintonizadas com a vontade e com as bênçãos de Deus….

Abs, Betty

3 Comentários a “Uma Herança Espiritual—Parte 3”

  1. Isia de Oliveira Gueiros disse:

    Betty
    È realmente muito bom pertencer a uma família que serve ao Senhor.Sei que foi um conforto para você ler a carta de seu filho.O legado que seu pai deixou para seu filho é muito mais valioso de que qualquer herança terrena.Que as bençãos de Deus estejam com você e todo os seus.Sua irmã em Cristo Isia

  2. paola disse:

    Que história linda de verdadeiro amor e fidelidade a Deus ! que jesus ilumine hoje e sempre sua família ! um abraço !

  3. Nilva Moraes Ferreira disse:

    Muito linda a sua história. Todo mundo tem uma história, mas nem todos conseguem expressar tão bem. Como é bom poder escrever e ler!!UM abraço!!! Fique com Deus!! É Ele que nos sustenta e nos dá ânimo de buscá-Lo, sempre.

Deixe o seu comentário

Crônicas do Cotidiano > Uma Herança Espiritual—Parte 3