Meditação após a Santa Ceia

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Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim.
Por semelhante modo, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo. Este cálice é a nova aliança no meu sangue, fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em memória de mim.
Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que Ele venha.
Por isso, aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor.
Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim como do pão e beba do cálice; Pois quem come e bebe, sem discernir o corpo, come e bebe juizo para si.

I Coríntios 11:23-29


Senhor, novamente eu comi e bebi na tua casa. Estendi a minha mão e levei pão à minha boca. O sabor do vinho ainda perdura. São lembranças do corpo e do sangue do teu único filho, quebrado e derramado por mim.

Meu Pai, já fiz isto tantas vezes, em igrejas, cidades e até países diferentes. Será que, alguma vez, em algum lugar, eu realmente “discerni o corpo” do meu Mestre sofrido? Será que, hoje, participei “dignamente”? Por que não chorei ao pensar no corpo ferido e na morte que deveria estar “anunciando” enquanto engolia duas vezes.

Será, meu Deus, que meu coração se endureceu? Confesso que é verdade. Sem meu querer, sem meu perceber, Satanás conseguiu se infiltrar nas minhas emoções, na minha vida. De repente, eu enxergo a devastação que ele perpetrou. Sei porque eu não chorei.

Ó Pai, sou tua filha desde pequenina. Me lembro ainda quando, pela primeira vez, Mamãe leu o relato da morte de Jesus para mim. Era duma Bíblia reescrita para crianças. Durante semanas e meses, havia acompanhado atentamente a revelação divina—a criação, o pecado, o dilúvio, a formação do povo de Deus, os heróis da fé, os profetas… Vibrei com o nascimento de Jesus. Vi-O crescendo, pregando, contando parábolas, fazendo milagres… Eu não sabia ler. Não tínhamos televisão. Durante o dia as cenas se repassavam na minha mente até, de noite, um outro capítulo da história divina se desenrolava através dos lábios da minha mãe.

Com lágrimas nos olhos, acompanhei horrorizada cada detalhe do seu sofrimento. Sentí o tamanho da sua angústia no Getsêmani quando a sua perspiração, apesar do frio noturno, se transformou em gotas de sangue. Através das minhas próprias feridas já sabia que sangue significava sofrimento e dor.

Escandalizei-me com o beijo traidor de Judas. Queria gritar “Ele é inocente!” quando os soldados foram lhe prender. Aprovei a ação rápida de Pedro, querendo defender seu mestre com sua espada. Admirada, observei Jesus curando a ferida do seu inimigo e ouví as suas palavras—“Pedro, guarde esta espada. Se eu pedisse, milhares de anjos viriam me livrar. Mas eu estou aqui porque o meu Pai quer. Tenho uma missão para cumprir.”

Consternada, vi que o ato milagroso e a misericórdia de Jesus não tiveram efeito nenhum naqueles soldados. Giraram-lhe os braços para amarrar aquelas mãos curadoras e abençoadoras, tão desconfortavelmente, atrás das costas. Eu O vi, ainda coberto de sangue por causa da sua angústia anterior, sendo levado pelos soldados rudes e insensíveis. Na escuridão, cambaleava, sem poder se equilibrar com as mãos atadas, enquanto era empurrado e puxado aos gritos e berros.

Ofendi-me com as falsas acusações. Senti os açoites como se fossem nas minhas costas. Queria que alguém viesse passar um lenço pela sua testa para enxugar o sangue que escorria da coroa de espinhos. Fiquei repugnada quando cuspiram no seu rosto. Torcí para que Herodes e Pilatos lhe inocentassem. Esperei que Jesus lhes explicasse a verdadeira situação. Mas Ele permaneceu calado enquanto ninguém se levantou na sua defesa. Eu não entendia o por que.

Zanguei-me com Pedro por ter-lhe negado e fiquei furiosa com todos aqueles lideres religiosos e políticos. Eram idiotas, ruins, covardes…!

Não quis acreditar quando veio a condenação. Ele era tão bom! Passo a passo, Mamãe lia sobre a sua sofrida caminhada até Gólgota e quando os pregos traspassaram as mãos e os pés de Jesus, comecei a chorar. Soluçando no colo dela, eu soube que Ele morreu. Ela me confortou, prometendo que no próximo dia contaria sobre seu retorno à vida. E assim foi.

Durante semanas, Senhor, eu não quis ir além daqueles capítulos. Pedia para Mamãe lê-los repetidamente, até que as palavras e os acontecimentos ficaram gravados para sempre no meu coração. O livro explicava “O Senhor Jesus nunca fez nada de errado. Ele nunca mereceu nenhum castigo… Mas as pessoas sim. As pessoas têm feito muitas maldades. Os homens e as mulheres e as crianças também; todos. Estes sim merecem castigo. Eles não podem entrar no lindo céu, perto de Deus… Mas o Senhor Jesus amava tanto às pessoas. Ele queria levar o castigo, que eles mereciam. E então… Então o lindo céu se abriria novamente para estas pessoas. Era isto, tão maravilhoso, que o Senhor queria dar a elas. Mas aquele castigo… Aquele castigo era tão pesado! E o Senhor Jesus teve que carregá-lo sozinho… Ele não dizia nenhuma palavra. A dor e a tristeza, Ele agüentou pacientemente e em silêncio… E não havia ira ou raiva no seu olhar….”

Mamãe também respondia às minhas perguntas e, aos poucos, entendi que Jesus havia sofrido aquilo tudo em meu lugar. Fiquei tão grata. Zelava para mostrar o meu amor a ti pela minha obediência e bom comportamento.

Fui crescendo nos teus caminhos, Senhor, pela tua graça. Fiz profissão da minha fé, casei com um servo teu, leio a tua palavra, vou aos cultos dominicais, ensino na Escola Dominical, compartilho a minha fé. Mas ainda assim, eu esfriei. Não sou mais nem um pouco aquela menina que tanto se chocou com a existência de violência, crueldade e sofrimento.

Pai, pensei que estava tendo cuidado com os filmes que assisto. Fiscalizo e controlo aquilo que meus filhos vêem. Mas, verifico agora que, aos poucos, meus critérios se modificaram. É claro que continuo rejeitando aquilo que é explicitamente imoral ou violento. Procuro o informativo, o educativo, o interessante. Ainda assim o teu inimigo conseguiu se infiltrar.

Ao tomar a ceia, tentei me concentrar no quebrantamento do corpo e no derramamento do sangue do meu Salvador. Procurei visualizar o seu semblante sofrido. Mas meu coração não seguia a imaginação. E fiquei pensando. Cenas do filme que havia assistido no dia anterior surgiram na minha mente. Um trama muito bem feito. Atores famosos, talentosos. Terroristas árabes seqüestrando um avião. Comandos americanos entrando. Uma aeromoça corajosa. O bem contra o mal. O bem vence. Assim que deve ser. Nenhuma cena violando o sétimo mandamento. Mas o sexto mandamento? Uma colega da aeromoça leva um empurrão e acaba morta no chão. A câmara focaliza o poço vermelho ao lado da sua cabeça. Um senador leva um tiro no rosto e o sangue escorre das mãos que ele levanta instintivamente. Um dos terroristas cambaleia no corredor com sangue jorrando das costas enquanto outro agoniza após um confronto com um “salvador” do avião. Pessoas angustiadas, feridas, ensangüentadas, despedaçadas, agonizantes, mortas—tudo no espaço de uma hora e meia de entretenimento. Aconteceu, passou, pronto! Não perdi sono. Não tive pesadelos. Foi mais um filme de muitos que já assisti.

Mas o pior, meu Deus, ainda não lhe confessei. É que meus filhos também assistiram. É verdade que viravam o rosto nas cenas violentas. Mas estavam presentes. Da próxima vez, eles vão se lembrar—“Vi este filme com a minha mãe”. E descansadamente se sentarão para vê-lo novamente. Eu perguntarei—“Têm certeza que este filme é bom?” E eles responderão— “Já vimos com a senhora, Mamãe”. Continuarei com meus afazeres e, daquela vez, não estarei aí para mandar fechar os olhos… E as cenas de violência gratuita se multiplicarão nas suas memórias. Depois de algumas vezes, também dormirão tranqüilamente. Era apenas diversão. Aconteceu, passou, pronto!

Tenha misericórdia, Senhor, para que eles não vejam o sacrifício do Teu Filho do mesmo modo, como algo que aconteceu, passou e pronto. Fazes com que este ato de comer e beber não se torne para eles um mero ritual, místico, comunitário, com origens antigas e pouco relevantes.

Ó Pai, agradeço este teu alerta. Faze com que o sofrimento do meu Salvador volte a ser mais e mais real para mim. Quero que a minha obediência a ti seja fruto de uma gratidão sincera, de um apercebimento da imensidão do teu amor por mim. Somente assim, serei motivada a ser-lhe fiel nas horas difíceis e poderei ter alegria quando for chamada a ser “co-participante dos sofrimentos de Cristo”.

Finalmente, dá-me sabedoria em lidar com a violência que fica tentando se infiltrar na nossa vida. Não são apenas os filmes, meu Pai. Preciso de discernimento para escolher bem na avalanche de jogos de computador, videogames, videoclipes musicais, livros e revistas que surgem quase diariamente. Dá-me coragem para parar de tolerar o “mais ou menos bom”. Quero insistir somente no bem, e não apenas evitar o péssimo. Não permitas que, por causa do meu descuido, meus filhos aprendam a nutrir prazer em presenciar cenas violentas e, muito menos, a se deleitar em participar em videogames e jogos de computador, brincando de matar, “virtualmente” despedaçando pessoas e “estourando miolos” enquanto gritos de terror e dor enchem seus ouvidos incessantemente.

Por favor, levante, do meio do teu povo, algumas pessoas capacitadas para enfrentar o teu inimigo nesta área; que possam se engajar neste combate mortal ao Mortal Kombat e seus similares e que possam divulgar aos irmãos os perigos e valores inerentes nos entretenimentos que nos atingem de todos os lados.

Pai Misericordioso, não deixes que tantos falsos especialistas com suas teorias pedagógicas modernas, atraentes e satânicas, alcancem e intimidem os teus servos—pais e filhos—fazendo com que fiquem com medo de procurar o certo e defendê-lo do errado. Temos a tua Palavra, ajuda-nos a permanecer nela, e conhecer a verdade que nos libertará da escravidão que eles querem nos impingir.

Peço isto, em nome do teu filho, cujo corpo quebrado e sangue derramado quero “discernir” e “anunciar” plenamente, da próxima vez que participar da tua santa ceia.
Amém.

Elizabeth Zekveld Portela
Escrito em janeiro de 1997
Publicado na SAF em Revista, 2º Trimestre / 1998

Um Comentário a “Meditação após a Santa Ceia”

  1. Dóris A. de Matos dos Santos disse:

    Cara Elizabeth:

    Nos dias que antecedem a minha participação em mais uma Santa Ceia, li seu artigo e me emocionei com a forma que você descreve a forma como foi se inteirando da história do sacrifício de Cristo por nós, na sua infância. E como você, com a inocência própria das crianças, co-participava desse sofrimento…
    Também me emocionei, de forma triste, quando você relata seu “esfriamento” ou a insensibilidade diante da violência com que o inimigo nos impressiona! Quando você relata sua participação em escolas dominicais, pensei que talvez fosse interessante lhe dizer que uma releitura da lei de Deus (especialmente Êxodo 20:8) pode ser oportuna. E também uma reflexão sobre Romanos 7:10.
    Abraço,
    Dóris

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