Uma Herança Espiritual—Parte 1

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Pois a promessa é para vocês, e para seus filhos e para todos os que estão longe.—Atos 2.39
(Um Albúm de Recordações (de 1941)

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Tenho estado ausente do meu blog por simples falta de tempo. Comecei várias postagens, mas todas ficaram no meio, por alguma razão ou outra. Vamos ver se termino esta, pois tenho viajado, palestrado, e faço parte de um Conselho Diretivo de uma Instituição de ensino e de um grupo de senhoras que trabalham com esposas de seminaristas. Além disso, trabalho com traduções e procuro escrever artigos, hospedar amigos e ainda cuidar da minha família. Tudo isso toma tempo e me deixa um pouco exasperada, às vezes, por não conseguir terminar o que quero…

Ao mesmo tempo, desde que nos mudamos (já faz mais do que um ano) para o apartamento atual, tenho o propósito de examinar e reorganizar o conteúdo das dezenas de caixas que são fruto do acumulo de 35 anos de convívio, quatro filhos, documentos de antigas empresas nas quais trabalhou o meu marido, contas pagas desde 1974, etc., etc. Haja treco!

Está me dando enorme prazer encher grandes sacos de lixo com as coisas que não são mais relevantes à nossa vida (e escondê-los de Mamãe porque ela consegue visualizar possíveis usos para qualquer pedaço de papel, e não importa que já tivemos uns dez mil outros iguaizinhos guardados há vinte ou trinta anos, sem serem aproveitados ☺ ).

Comprei umas caixas bonitas (e menores) para substituir as velhas, mofadas ou feias que guardavam as lembranças especiais da nossa vida de criança e adolescente, dos nossos irmãos e filhos, dos nossos pais e avós… As recordações dos nascimentos, casamentos e enterros das pessoas que fazem ou fizeram parte da nossa família aqui e nos quatro cantos da terra….

Mas esse post não é apenas um registro de minhas frustrações com a falta de tempo, ou com o excesso de atividades nas quais continuo me envolvendo. No meio dos meus “trecos” existem também muitas preciosidades. E é sobre uma delas que quero falar.

Nesta semana re-encontrei um dos poucos objetos que guardei da minha mãe. Ela partiu para a glória em julho de 1988, quando acabara de fazer cinqüenta e oito anos.

É um pequeno caderno, coberto com um tecido aveludado azul-claro, estampado com pequenas flores e figuras. Ela o chamava de poesie-album (o nome já diz o que é: álbum de poesias, muito semelhante, no holandês). Lembro-me de estarmos sentadas na nossa sala de estar, eu e ela, quando eu tinha uns dez anos. Era um dia daquelas faxinas de primavera que costumam ser feitas no hemisfério norte. (Já escrevi sobre isto aqui.) Depois de espanar, limpar e lavar todos os cantos e objetos do ambiente, estávamos olhando o conteúdo de uma gaveta grande que ficava na parte inferior do móvel com portas de vidro, onde ela guardava a sua louça bonita. Não nos era permitido mexer naquela gaveta—muitas coisas preciosas estavam lá, os documentos como passaportes e certidões, misturados com suas lembranças do passado—fotos, cartas, recortes…

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Mas, aquele pequeno livro me fascinava pois, apesar de já estar desbotado e pouco atraente no lado de fora, tinha ele figuras mais bonitas do que aquelas que eram vendidas nas lojas no meu tempo de menina. Eu achava que a posse do caderno, com coloridos e brilhosos adesivos, em alto relevo, de crianças, bonecas, anjos, borboletas, passarinhos e flores, estaria muito mais adequadamente colocada em minhas mãos do que nas dela. Naquele dia, olhamos as páginas juntas e conversamos sobre sua vida na Holanda, sobre sua família e a respeito das amigas cujos nomes apareciam em baixo de poesias rebuscadas ou brincalhonas. Amigas com a letra bem mais bonita do que a minha, apesar de terem a minha idade quando escreveram…

Através das suas palavras e das fotos que guardava, podia imaginá-la—uma menina alta e magra, alegre e curiosa, com um grande laço no cabelo loiro e liso—deslizando os dedos pela capa de veludo do recém-recebido poesie-album. Escolhendo e colando as figuras, aqui e ali… Pensando—Quem são as pessoas que vou convidar para escrever dentro dele? Pegando um lápis e anotando, bem no cantinho das páginas (ainda visível), “heit” (Papai), “mem” (Mamãe) e, em seguida, os nomes de cada um dos seus oito irmãos—cinco mais velhos e três mais novos do que ela.  Depois “beppe Hiske” (Vovó), Pake Pieter (Vovô)… Seguido pelos nomes das amigas.  E eles escreveram … Todos em forma de poesias. Algumas memorizadas, outras copiadas, ainda outras inventadas…

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O valor do livro para mim agora não está mais nas figuras (apesar de elas ainda continuarem coloridas, belas e muito adiantadas, graficamente, para a época em que foram impressas) mas nas palavras que foram escritas nele—a maioria no espaço de um mês—fevereiro de 1941—quando minha mãe tinha apenas 10 anos. Palavras relidas dezenas, talvez centenas de vezes—como criança e como adulto—todo ano no dia da faxina ou quando ela abria a gaveta para ver ou buscar outra coisa. Como eu gostaria de poder conversar com ela novamente, para fazer todas as perguntas que antes não soube fazer!

Não me lembro de todos os detalhes daquilo que conversamos naquele dia, mas ficou a impressão que naquelas poucas páginas estavam encerradas uma imensa saudade de um precioso passado que nunca mais seria recuperado. Que aquele volume, apesar do seu aspecto infantil, continha algo da essência da minha mãe, que almejava guardar e entesourar. Ela nunca permitiu que eu ou meus irmãos levassem o livrinho para fora daquela sala. Sempre permaneceu perto ou dentro da gaveta, até a sua morte. Agora está comigo e, finalmente, repousa num lugar bonito e especial—como recordação e herança para as gerações que me/nos seguirão—numa continuidade intelectual e espiritual.

Uma herança intelectual
Anexei algumas fotos das páginas do caderno e quero que perceba(m) a diferença que a fé cristã fez (e faz) na vida dos servos de Deus. Olhem a letra da minha mãe na apresentação. Ela tinha dez anos! Morava numa fazenda de gado de leite, onde os filhos ajudavam os pais com todo o trabalho doméstico e campestre. Assim ela estava aprendendo a cozinhar, lavar, passar… A cuidar dos bichos… A plantar, podar, arrancar mato, colher, fazer conservas… Como qualquer criança nascida e criada no campo, em qualquer parte do mundo, estava se preparando para assumir trabalho braçal.

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Mas ela e as gerações que lhe antecederam também estudavam em escolas evangélicas. Ela lia e escrevia, memorizava, pensava, articulava bem… Tinha noções de geografia, história, matemática… Apreciava literatura, arte, música, cultura… Sabia o que era cidadania…

Era uma “caipira instruída”, como seus pais, seus avós, seus bisavós… Era ainda o efeito da Reforma do Século XVI, tirando o povo da ignorância e da miséria, democratizando a possibilidade, o prazer e o poder do conhecer—um efeito que chegaria ao Brasil apenas com os primeiros missionários protestantes.

Uma herança espiritual
Não sinto grande interesse nas páginas com as palavras das suas amigas. Mas as outras me fascinam e enternecem. Preservada aqui, tenho uma demonstração da presença e da importância de Deus nas vidas dos meus antepassados: da minha mãe Geertje e dos seus irmãos, da minha avó Elizabeth e do meu avô Sijmen Pieter, e do meu bisavô Pieter. Registrado aqui, tenho conhecimento do testemunho de três gerações. Eu e meus irmãos somos a quarta. Meus filhos são a quinta… Ainda andando com Deus… Agora preparando-se para receber e encaminhar a sexta… (E estou apenas falando deste caderno e da minha própria vida—os meus bisavós também foram filhos de crentes e talvez netos, bisnetos…. A memória familiar não alcança a época em que Deus não era honrado por meus antepassados.)

A vida não era fácil em 1941. Nascida no primeiro ano da Grande Depressão (1930), minha mãe havia sobrevivido uma década de conturbações econômicas que seriamente diminuíram as posses e possibilidades da sua família. A mídia está nos relembrando, nestes dias, da desolação daquele período, por causa da crise econômica atual que assola os Estados Unidos e que está afetando o mundo inteiro.

Antes disto, meus avôs já haviam passado a sua juventude sofrendo as agruras causadas pela Primeira Guerra Mundial. Fico imaginando as dúvidas que devem ter atacado as suas mentes e corações, quando pensavam sobre como poderiam alimentar e vestir e proteger nove filhos. Pois, naquele fevereiro de 1941, fazia poucos meses que Holanda havia sido ocupada militarmente pela vizinha Alemanha. Por mais quatro anos, a família Buma estaria sofrendo sob os efeitos continuamente piores da Segunda Guerra Mundial. Os tempos estavam incertos, assustadores, mas meus ancestrais encheram as suas canetas no tinteiro e, pensando seriamente sobre o que poderiam dizer, escreveram no pequeno caderno da minha mãe as palavras que achavam ser as melhores para ela.

Assim, minha mãe pode sentir-se segura no amor da sua família, dos seus amigos e do Deus dos seus pais. Veja como a importância e beleza do relacionamento com Deus permeia os pensamentos dos seus familiares, até dos irmãos adolescentes e infantis… Na sua reação àquele mundo de grandes incertezas e temores, não vemos nada do niilismo, hedonismo, e agnosticismo que têm dominado a mente das gerações pós-guerra… Nada de rebeldia, amargura, revolta… Ninguém advoga para ela—comamos e bebamos, pois amanhã morreremos….

Cada um tem certeza que Jesus viveu, morreu e ressuscitou no seu lugar e que é preciso servi-lo haja o que houver, venha o que vier, aconteça o que acontecer… Muitos falam do caminho a percorrer e as escolhas que terão que ser feitas. E como fazer isto. Começando com Deus. Andando com Deus. Terminando com Deus (vários falam da realidade da morte e da eternidade)..  As suas palavras transmitem a necessidade de confiança, entrega, contentamento, perseverança….  E fizeram o que disseram… Fielmente… Até o fim dos seus dias…

Quero compartilhar com você(s) o texto desta minha herança—o legado que recebi dos meus antepassados, contido nestas páginas que sobreviveram a quase todos que nelas escreveram. Segue a minha tradução (menos poética) de algumas das recomendações e conselhos destes meus ancestrais. (Eles moravam no norte da Holanda e falavam “fries”—um dialeto bem diferente do holandês. Mas a língua oficial era holandês e tudo escrito no álbum está nesta língua—exceto aqueles nomes escritos a lápis por minha mãe que, por alguma razão, ela nunca apagou).

Ylst, 17 de fevereiro de 1941
Querida Geertje
Que o Senhor, no caminho da vida
Seja seu ajudador, suporte e conforto.
Que Ele seja sempre seu guia
Para onde você for.
Lembranças do seu pai.
S. P. Buma (Sijmen Pieter)

Ylst, 17 de fevereiro de 1941
Querida Geertje
Ande contente
No caminho aqui em baixo.
Às vezes lutando, às vezes desfrutando
Daquilo que a terra poderá lhe conceder.
Mas lembre-se.
A boa vida realmente começa com Deus.
Lembranças da sua mãe.
Elizabeth Buma-Attema

Ylst, 23 de fevereiro de 1941
Querida Geertje:
Deixe a sua luz brilhar
Com muita força ao seu redor.
Deixe a luzir afetuosamente
Onde você encontrar tristeza.
Deixe-a cintilar alegremente
Com fulgor, clareza e pureza
Assim você será uma benção
Para outras pessoas.
Da sua irmã, Hiske (a mais velha dos nove irmãos)

Ylst, 17 de fevereiro de 1941
Querida Geertje:
No vale terreno que nós percorremos
Existem dois caminhos
Diz o Senhor.
Orfa escolheu o caminho largo,
Rute seguiu o estreito, honrando a Deus.
Que o Senhor possa lhe encontrar
No mesmo caminho que a Rute percorreu
Assim você caminhará, amada por Deus,
Até a santa cidade celestial.
Da sua irmã, Romkje

Ylst, 17 de fevereiro de 1941
Querida Geertje:
Aquela que quando jovem
Dedicar seu coração a Jesus
Esta vai acumular um tesouro
Que durará uma eternidade.
Recordações do seu irmão, Pieter.

Ylst, 17 de fevereiro de 1941
Querida Geertje:
Sem preocupar-se com o amanhã
Confia em Deus.
Seja contente hoje
E agradeça por tudo que lhe acontecer.
Do seu irmão, Wybrand

Ylst, 18 de fevereiro de 1941
Querida Geertje:
Aquela que ama a Deus
Será filha dele.
Será recebedora
Da graça de Deus.
Da sua irmã, Tjitske

Ylst, 01 de janeiro de 1942
Querida Geertje:
(Salmo 121 adaptado e rimado)
Levante os olhos para os montes e espere
O socorro do Senhor.
Apenas Ele pode lhe ajudar.
Aquele que fez os céus e a terra.
É o que sempre os mantém.
Tante (Tia) Sjikke (ela e o Tio Bertus devem ter rompido o ano com seus familiares e minha mãe lembrou-se de pegar uma recordação deles)

Ylst, 01 de janeiro de 1942
Querida Geertje:
O que escreverei nesta página?
Foi o que pensei, quando a recebi.
Quero deixar aqui algo
Que valha a pena para você.
A sua vida—que seja dedicada a Deus.
A sua morte—que futuramente encontre alegria nele.
A sua luta—que seja como a de uma corajosa heroína.
Eis o meu desejo para você.
Tente fazer com que o meu desejo se realize,
Seu Oom (Tio) Bertus

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Ylst, 22 de dezembro de 1941
Querida Geertje:
Mostre com suas palavras e suas ações
Que você é uma filha de Deus.
Você foi batizada nos nomes de Deus.
Ame a Ele acima de tudo mais.
Dobre os joelhos muitas vezes.
Ele está sempre prestando atenção a você.
E Ele sempre ouve cada palavra
Da oração de uma criança.
Pake (Vovô) Pieter

E assim encerro por hoje, com as palavras do meu bisavô que nunca conheci, mas que foi usado por Deus como elo de transmissão da sua mensagem. O meu desejo é que você possa transmitir às suas crianças—sobrinhos, filhos, netos ou alunos de Escola Dominical—como eles podem mostrar com suas palavras e ações que têm a certeza, hoje e sempre, que são filhos de Deus, que Ele os vê e que Ele os ouve.

Se encontrar tempo, compartilharei mais algumas das coisas especiais que formam a herança espiritual da minha família—coisas que re-encontrei na re-organização que ainda está longe de se completar…

Da também “filha da promessa”,
Betty

5 Comentários a “Uma Herança Espiritual—Parte 1”

  1. David disse:

    Lindos textos, mãe. Dou graças a Deus pela bênção de ter uma família que continua nos caminhos do Senhor.

  2. Denise - RJ disse:

    Que lindo Betty!! Ver suas gerações declarando que Jesus é o Senhor. Estou tentando conter as lágrimas (estou no meu trabalho), mas profetizo também sobre mim que todas as minhas gerações adorarão Aquele que é o Rei do Universo.

    Deus a abençoe!!

  3. Grace Portela disse:

    Gostei muito das palavras que minha bisavó escreveu. É gostoso ver que minha avó materna seguiu os conselhos tão sábios encontrados nesse livrinho. Ela realmente escolheu o caminho de Rute (como sua irmã aconselhou), e por isso, fico grata. Foi através dessa escolha que pude ter uma mãe como você: centrada nos caminhos do Senhor. Acho que Oma (vovó) ficaria muito comovida em ler esse blog e ver que as misericórdias de Deus são sem fim.

  4. Isia Gueiros disse:

    Querida Betty
    Foi muito confortante poder ler os testemunhos dos seus antepassados.Estava sentindo falta de noticias suas.Realmente é uma benção ter pais e avós que foram fieis a Deus.Sempre lembro de minha avó materna das suas orações às refeições e seus hinos prediletos.Meu pai sempre foi fiel ao Senhor e gostava muito de escrever em forma de versos.Continue escrevendo.

  5. Regina Paiva disse:

    Betty,
    Gosto de ler memórias. A história das pessoas, sobretudo passadas há muito tempo me atraem demais. Viajo e é como se estivesse lá, sendo também uma personagem desapercebida, silenciosa, observadora.
    Mas a temática da herança espiritual que você transcreveu e descreveu torna a seu relato muito mais especial.
    Acredito mesmo que você tenha posse do conteúdo para um livro ou mesmo uma série muito edificante.
    Prazer em ter lido. Voltarei mais vezes!

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