O Homem que não Sentava

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(Ele) é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos, ou pensamos, conforme o seu poder que opera em nós. — Efésios 3.20.

Isabel dirigia o carro com os três filhinhos no banco de trás.
—Mãe, aquele homem ainda está lá!
—Mamãe, por que ele não vai embora?
—Ele não tem casa, seu bobo, alfinetou a irmãzinha mais velha.
—É verdade, mãe?
—Por que ele não senta?
—É, mãe. Por que ele sempre está de pé? Ele é louco?
—O pastor do Pedrinho falou que ele tem um demônio. Mandou ficar longe dele.


As crianças se arrepiaram.
—Mãe, a Dorinha leva comida para ele! O demônio pode pegar ela!
—Não acho que é demônio, Gabriel. Ontem, eu fui com Dorinha para a padaria, e ele me perguntou meu nome. Disse que meu nome é bonito. Eu vou orar e pedir um lugar para ele morar. ‘Tou com muita pena dele.

Isabel continuou dirigindo, preocupada, orando no seu coração. A conversa entre os três pequenos era tão intensa que eles nem notaram seu silêncio. —Pai, não sei como responder a meus filhos. Não entendo por que o Senhor está deixando aquele homem logo ali! Por favor, nos ajude a achar logo uma solução.

Dias antes, um homem magro e esfarrapado havia se instalado em uma esquina perto da casa de Isabel. Sempre de pé, pedia esmola aos passantes. Às vezes, fumava um cigarro. Outras horas, ficava fitando um ponto perdido no horizonte, sem parecer perceber nada daquilo que lhe cercava. Mas, quando alguns meninos da vizinhança paravam para lhe atordoar, ele gritava palavrões e ameaçava com um pedaço de madeira. Os longos cabelos despenteados e a barba desgrenhada, realmente, davam-lhe um aspecto de louco.

Logo, Isabel e seu esposo, Neto, procuraram escolher um caminho diferente, quando saíam de carro com as crianças. Não queriam deparar com ele. Ver um ser humano continuamente naquele estado era muito incômodo. Ouvir as observações e perguntas dos seus filhos, era mais desagradável ainda.

Um dia, a faxineira chegou com uma novidade.
— D. Isabel, a senhora já viu onde ‘tá o Sr. Jarbas agora?
—Não vi não.
—Venha espiar.
As duas levaram uma cadeira até o muro que cercava o quintal e Isabel subiu para olhar na direção em que a Raimunda estava apontando. Lá estava Sr. Jarbas, deitado na sombra de uma enorme mangueira no terreno baldio, bem no outro lado da rua!

Agora, a procura por ajuda para Sr. Jarbas tornou-se mais fervorosa ainda. Toda vez que entravam ou saíam do portão, as crianças espreitavam para ver se ele ainda estava lá. Diariamente, faziam questão de orar por uma casa para Sr. Jarbas. Colocaram sua descrição em vários programas de rádio para ver se algum parente aparecia. Ligaram para inúmeras instituições de caridade. Falaram com as lideranças de várias igrejas atrás de alguma entidade evangélica que lidava com os sem-teto. Sempre a resposta era negativa. E o Sr. Jarbas continuava lá, debaixo da árvore, sendo alimentado, também, pelas outras pessoas da vizinhança. Logo, a temporada das chuvas se aproximou. Ele se cobria com um plástico e ficava debaixo do temporal. Era algo triste de se ver. Ninguém tinha coragem de colocar Sr. Jarbas para dentro da sua casa. Nem Isabel e Neto…

Finalmente, o pastor da igreja deles encontrou um homem muito especial – o Senhor Lucas. Foi buscá-lo e, juntos, foram conversar com Sr. Jarbas debaixo da árvore. Logo voltaram, devagarzinho, sustentando-o. Enquanto isto, Isabel recolheu os filhos do quintal e mandou que ficassem num quarto com a Raimunda. Foi dado banho de mangueira num Sr. Jarbas meio relutante, com bastante sabonete e xampu. Vestido com roupas limpas, internaram-no em um hospital.

As roupas mal cheirosas do Sr. Jarbas ficaram no quintal. Enquanto definia com a Raimunda se iriam lavá-las ou jogá-las fora, veio à mente de Isabel as palavras de Isaías 64.6, “Mas todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças como trapo da imundície…” –É mesmo, Senhor. O nosso nojo dessa calça imunda e fedorenta aqui não chega nem perto daquilo que o Senhor sente quando nos vê antes de sermos cobertos pelo sangue de Jesus. Ó Pai, não mereço nenhuma graça tua, especialmente nessa situação, mas agradeço de todo coração que o Senhor nos atendeu, levando o Sr. Jarbas para um lugar melhor, longe daqui. Estamos tão aliviados!

Mas Deus tinha outros planos. Dois dias depois, o hospital ligou avisando que o Sr. Jarbas estava de alta. Para o hospital, o Sr. Jarbas morava com eles! Quando as crianças voltaram das aulas, arregalaram os olhos ao vê-lo sentado em uma cadeira de balanço, no terraço da sua casa. Foram apresentados, uma por uma, e depois saíram para longe, sussurrando se o demônio do Sr. Jarbas iria pegá-los. As preocupações de Isabel eram outras. Ela não sabia como lidar com aquele homem estranho, conhecidamente viciado em bebida e cheio de piolhos que, ao mesmo tempo, abrigava doenças desconhecidas e hábitos possivelmente perigosos. Raimunda trouxe um prato de sopa, e Isabel sentou-se ao lado dele, sustentando a sua mão trêmula e falando calmamente, enquanto levava as colheradas à boca. Depois, preparou um lugar para ele se deitar. Ele fazia tudo que ela lhe pedia, como se fosse uma criança.

Telefonou para Sr. Lucas. –Irmão, o hospital mandou Sr. Jarbas para nossa casa. O que faço agora? Sr. Lucas fez algumas ligações e, naquela noite, Sr. Jarbas foi internado em uma instituição para “recuperação de pessoas dependentes” num sítio nos arredores da cidade. Enquanto Isabel saiu para providenciar todos os objetos que a instituição exigia, o Neto passou algum tempo puxando conversa sobre o seu passado. Naquela noite, ligou para seu primo que era pastor em uma cidade, cerca de três mil quilômetros de distância, rio abaixo. –Oi, Rigoberto…. Estou com um “abacaxi” aqui que talvez você possa descascar. Será um milagre se conseguir, mas quero saber se você topa tentar. Os dois conversaram um bom tempo, com Neto passando alguns dados que havia anotado.

As semanas foram se passando e Isabel já estava abordando Deus sobre o que fariam quando Sr. Jarbas tivesse que sair do lugar onde estava. Então, aconteceu o milagre. O telefone tocou, e uma moça no outro lado da linha falou.
–D. Isabel, teve um pastor aqui chamado Rigoberto e ele falou que o meu pai está na casa da senhora. A gente pensava que ele tinha morrido. Seguiu-se, então, uma longa conversa em que, maravilhadas, duas mulheres cristãs tentaram remontar o quebra-cabeça que era a vida do Sr. Jarbas.

Alguns dias depois, lá estava Sr. Jarbas, novamente, na casa de Neto e Isabel. A sua filha havia chegado, e ele, agora, estava comendo com eles na mesa e dormindo em um quarto da casa. Sem barba e penteado, Sr. Jarbas parecia outra pessoa. Ao falar do passado, seus olhos brilhavam, ele ria e até fazia gracejos inteligentes.

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Um poucos afastados, Glorinha e seus irmãos procuraram explicar a situação a uns amiguinhos.
—O Sr. Jarbas morava bem longe daqui e ele veio trabalhar na nossa cidade para construir prédios. Como é que chama mesmo o que ele era, Gabriel?
—Mestre de obras. E aí ele caiu de um andar bem alto e bateu a cabeça!
—Você é chato! Eu que ‘tou contando a história! Mas, é verdade. Papai diz que ele perdeu a memória e a construtora não cuidou dele. Ninguém avisou à família dele que ele estava machucado.
—Eles mentiram! Disseram que havia desaparecido! zangou-se Gabriel.
—E aí a esposa dele ‘perou e ‘perou. No fim, ela se casou de novo! completou Timóteo.
—E ele virou mendigo porque ele não podia mais trabalhar e ninguém amava mais ele.
—E ele não sabia escrever cartas.
—E a família dele não tinha telefone.
—Aquela senhora é a filha dele.
— Ele diz que ela não é. Fica falando que a filha dele é pequena.
—Já faz 17 anos que eles se viram pela última vez!
— Ela era da idade da Glorinha quando o Papai dela desapareceu. Ela diz que chorou muito, muito!
— Depois, ela aprendeu a amar Papai do céu.
—Amanhã, eles vão voar de volta, e ele vai morar na casa dela.
— Ele vai conhecer um monte de netinhos.
—Deus respondeu à minha oração.
—À minha também!
—À de todo mundo. Sr. Jarbas vai ter uma casa para morar, de verdade.
—E uma família também. [*]

Elizabeth Zekveld Portela
Publicado na SAF em Revista, 2º Trimestre / 2002

[*] Esta história é baseada em acontecimentos verídicos. Os nomes dos personagens foram modificados.

Passagens bíblicas ilustradas pelo relato: Salmo 7.12, 13; Provérbios 11.24, 25; 14.31; 19.17; 21.13; 22.9; 28.27; 29.7; 31.20; Isaías 58.7,8; Mateus 5.7; Lucas 10.25-37; Romanos 12.16; Colossenses 3.12; 1 João 3.17, 18

2 Comentários a “O Homem que não Sentava”

  1. Oliveira disse:

    Cara escritora

    Realmente interessante.
    Mais ainda por saber que se trata de fatos verídicos.

    Quando pequeno, por algumas vezes, meu pai trouxe estranhos para dentro de casa, elementos como este da sua história.

    Passávamos a noite trancados no quarto e com muito medo.
    Nunca nos aconteceu nada.

    Baseado num destes momentos, acho que meu irmão mais velho se inspirou para escrever aquele conto que lhe enviei resumido, que eu li ainda menino e nunca me esqueci.

    Acho que inspirado pelo seu texto acima, vou reescrevê-lo e publicar no meu blog.

    Um grande abraço

  2. Tânia Cassiano disse:

    Betty,
    Fiquei entre emocionada e pensativa. Quantas vezes nos omitimos em demonstrar amor ao próximo. Estou falando de mim, um dia desses me envolví emocionalmente com um aluno da escola, carente, o pai presidiário, fiquei com vontade de levá-lo prá minha casar e cuidar dele, mas aí o pessoal achou “perigoso”, e eu covardemente me acomodei. Ajudo como posso, despacho uma receita, dou algum dinheiro à mãe, dava aula de reforço, falava de Jesus (ele tem uns oito anos),dou algum presente no aniversário dele. Agora ele saiu da escola e perdí contato com ele. Oro por ele, e sei
    que não fiz o suficiente. Me dá uma tristeza!
    Espero reencontrá-lo e poder fazer algo mais efetivo. Sempre penso nele.
    Sei que fui omissa. E não me desculpo pelos empecilhos apresentados, sei que minha família queria me proteger, mas me sinto incomodada pela minha atitude.
    Me emocionou o Presb. tratando o
    Sr. Jarbas.
    Que Deus continue abençoando-os.
    Feliz dia do Amigo.
    Um abraço carinhoso da sua irmã em Cristo,
    Tânia

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