A Chegada de Nikki

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O justo atenta para a vida dos seus animais.
—Provérbios 12.10
Pequena Nikki
— Nikki, o que você está fazendo?! Pelo tom da voz de Isabel, a cachorrinha já sabia que havia feito algo que não devia. Correu debaixo da cadeira no terraço e ficou com a cabeça deitada entre as patas, de olho naquela mulher que estava com o dedo em riste. Isabel continuou resmungando enquanto apanhava, no quintal molhado, as roupas passadas que antes estiveram empilhadas em cima do freezer.
— Olhe o que você fez! Agora Áurea vai ter que lavar tudo de novo! Você tem muita sorte, muita sorte mesmo, que ela gosta de você! Senão, teríamos que espalhar “Vende-David Portela se filhote de Boxer” por todos os pet shops da redondeza!

Nikki permaneceu imóvel debaixo da cadeira. Gostava daquela mulher cuja voz agora estava tão brava. Todo dia Isabel lhe dava carinho. Mas tinha hora que era melhor se esconder, pois ela chegava sacudindo um espanador amarelo (sua “vara canina”). A voz de Isabel suavizou. –Não, não vou lhe castigar desta vez. Afinal, você não sabia que era proibido. Nikki levantou a carinha mascarada. O rabinho já ia balançar, quando ouviu –Mas, ai de você se tocar na comida dos gatos de novo! Rápido, ela voltou à posição anterior…
Meses antes, a família de Isabel confrontara um dilema. Jackie, a pastora alemã que haviam herdado na compra da casa, estava bem adoentada e apresentava crescentes sinais de senilidade. Tinha hora em que não reconhecia mais a voz dos donos, plantava-se no caminho dos carros, sujava onde não devia… Andava devagar e triste. O que fazer?Pouco a pouco, todos chegaram à conclusão que estava na hora de procurar alguém para preencher o vazio que Jackie iria deixar. Mas como? Deveria ser filhote ou adulto? Ele ou ela? Comprado ou adotado? De que raça? De que tamanho?A família discutia a questão. Cada um sabia o que queria e também o que não queria. Então começaram a investigar os cachorros dos amigos e vizinhos. Verificavam as raças que os noticiários alardeavam como perigosas. Conversavam com veterinários. Em casa, compartilhavam suas descobertas.—Você já viu a cicatriz no braço da Dona Graça? Ela só quis apartar seus cachorros e a branca lhe atacou. Foram 18 pontos.
— E olhe aqui, o que a fera do Alex fez na minha perna. Eles se esqueceram que ela estava solta. Nunca vou me esquecer deles gritando, puxando… O pavor que senti!
— Ontem quase não consegui pegar no sono na casa do Pedro. O cachorro deles nunca pára quieto! Qualquer barulhinho, já está latindo. Pode riscar essa raça da lista.
— Não quero um cachorro enorme feito o Duque. Quando os Silva viajaram, fiquei cuidando dele. Comia um saco de ração por semana e tive que apanhar o dobro disso de sujeira.Enquanto pesquisavam e sonhavam, parentes e conhecidos davam palpites e ofereciam cachorros—alguns gratuitos, outros custando verdadeiras fortunas. Isabel cansou-se de tanto recusar, de maneira delicada, as ofertas. Falava com Deus, pedindo sabedoria e harmonia familiar, ao mesmo tempo curiosa em saber qual a criatura que Ele já preparara para entrar no seu dia-a-dia.

Timóteo, o caçula, fez uma busca na Internet e logo cada membro da família se viu respondendo a um questionário que pretendia indicar as raças mais adequadas às suas necessidades e desejos. Deu Boxer em primeiro lugar—para todos! Foram olhar as fotos que Timóteo trazia à tela.
— Que bicho mais feio!
— Dizem que parece feroz mas não é. Exatamente o que estamos precisando! Assim pode assustar os invasores sem incomodar os convidados e hóspedes.
— É amoroso. Brincalhão. Fiel.
— Está resolvido. Vai ser Boxer.

Os debates familiares continuavam. Isabel relutou em concordar com a vinda de um filhote mas acabou cedendo à vontade dos filhos. Resolveram também que seria fêmea.

Mãe e filhos visitaram pet shops. Responderam a anúncios na Internet mas os donos moravam longe ou queriam muito dinheiro. Saíram num sábado chuvoso para olharem, desapontados, os poucos animais esperando doação no estacionamento de um shopping. Uma veterinária amiga foi com eles examinar uma ninhada de seis, mas achou vários defeitos. Poucos dias depois, telefonou.
— Gabriel, achei sua cachorrinha. Já encomendei. Tem dois meses.
— É mesmo, tia! Onde está? …

Assim, no dia seguinte, novamente atravessaram a cidade. Isabel estava preocupada. Seria outra viagem perdida? Mas, junto com Gabriel e Timóteo, ela se derreteu diante da cachorrinha dormindo no sofá de um pequeno sobrado.
— Olhe as patinhas brancas dela—parecem luvas.
— E a carinha—a máscara está uma perfeição.
— É tão pequenina.
— Veja o rabinho! Está do tamanho certo. E não pára de balançar. Venha cá.
A cadelinha não hesitou. Cheirou a mão do Gabriel e depois a lambeu. Aconchegou-se ao seu lado. Ninguém ligava mais para o fato dela estar sem pedigree e com conjuntivite. Isabel fez o cheque e logo ela estava no colo do Timóteo, a caminho do seu novo lar.

Nikki chegou no dia mais frio do ano. Todo mundo estava com pena dela, num lugar estranho, longe do calor materno. Com uma caixa, fizeram uma casinha na lavanderia. Forraram a caminha desprezada pelos gatos e colocaram uma bolsa térmica. À noite, ligaram uma luzinha, com o rádio sintonizado em música suave. Ao lado, os brinquedos novos—em forma de pão, osso, ouriço alaranjado…. Ao redor, jornais para colher os dejetos. A Nikki adorou. Não chorava, nem latia… De manhã, quando abriam a porta, seu rabinho parecia motorizado, balançando o corpo inteiro. Corria para fora e voltava, tentava agarrar as pernas que passavam por ela… Logo foi descobrindo o significado da palavrinha “não”.

Através da mágica da câmera digital do Gabriel, avós e irmãos distantes puderam participar da graça e das estripulias da cadelinha. Timóteo a colocou no colo diante da vídeo-câmera do computador para mostrá-la aos amigos na Internet. Estes teclavam mensagens do tipo —O meu Rottweiler é mais bonito! e —Que engraçadinha! Qual o nome dela? Timóteo respondia. —Ela não tem nome ainda. Ninguém gosta dos nomes que escolho!

Realmente. Levou duas semanas para os seis membros da família chegarem a um acordo sobre o nome. Pesquisaram e sugeriram centenas. Frustrada, Isabel começou a ler, em voz alta, os letreiros ao longo das ruas.
— Pare, mãe. É tudo nome de gente!
— E os nomes da Jackie e dos gatos. São nome de quê, hein?

Neto, o pai, queria o nome da primeira cadela no espaço—Laika. Desaprovado, começou a chamá-la de Lo-Sham.
— Que nome feio é este, pai? perguntou Glória, via e-mail.
— Significa “sem nome” em hebraico.

Finalmente, houve consenso. O nome seria Nikki. Timóteo, leitor dos conselhos de psicólogos caninos na Internet, queria ensinar a Isabel.
— A senhora não pode brigar e dizer o nome dela ao mesmo tempo, mãe.
— E como ela vai saber que estou falando com ela?
— Olhando nos olhos dela.
— E como vou fazer isto quando ela está correndo atrás da gatinha?

Timóteo também reclamou quando viu a mãe colocando a ração pelo “olhômetro”.
— Tem que ser 7/8 de uma xícara, mãe!
— Ô menino, não se preocupe com isto. Quem sabe cozinhar não precisa de medidor para alimentar um cachorro, não!

Isabel sentou-se na cadeira onde a Nikki se escondia. Deixou o braço pendurado ao lado. Logo sentiu uma leve lambida.
Depois um focinho molhado deslizou por debaixo da mão, seguido por uma cabecinha quadrada. Nikki esperou os dedos passarem ao longo das suas costas e virou-se para encarar a sua dona. Isabel bateu no colo –Venha cá! O rostinho irradiava alegria enquanto o rabinho sacudia o corpo todo.
— Você é muito feia, ‘viu? Mas muito querida também. E pare de me lamber!Enquanto alisava a cabeça da Nikki, Isabel ficou pensando em como a cachorrinha alegrava e unia a sua família, apesar das discussões que causara. Sua energia e alegria eram contagiantes. Todos brincavam com ela. Riam das suas tentativas de alcançar o próprio rabo. Sempre aparecia uma nova história sobre as travessuras da pequena “malandra” pois, apesar dos esforços para deixar tudo “à prova de cachorrinha”, ela sempre estava se metendo em encrencas. Derrubara as violetas da janela, virara a bacia com roupas, desenrolara o papel higiênico, espalhara a espuma de uma almofada e também o lixo…

Nikki levantou-se para correr atrás de uma borboleta. O quintal, forrado de grama e repleto de folhas e galhos, borboletas e passarinhos, servia como seu parque de diversões mas, naquela hora, parecia um paraíso para um catador de lixo. Garrafas de refrigerante, panos velhos e caixinhas misturavam-se com os brinquedos oficiais—sinais de esforços para distraí-la com objetos legitimamente“danificáveis”. Afinal, por um tempo, especializara-se em furtos. Assim a melhor gravata de Neto, sapatos, meias, camisetas, correspondências e até livros acharam o caminho da sala até o quintal. Isabel, então, ficara espreitando. Toda vez que Nikki entrava, ela sacudia a “vara canina” (o espanador) na sua direção. E Nikki logo aprendeu a respeitar as proibições. Mas sempre surgiam situações ainda inexploradas, como o desafio de subir no saco de ração para alcançar as roupas que acabara de arrastar pela lama.

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Soraia, uma gatinha vira-lata, adotada poucos meses antes, apareceu e começou a brincar com a bolinha da Nikki. Esta, imediatamente, correu para tirá-la. Isabel sorriu, pensando no relacionamento dos dois. Soraia insistia no seu direito de passear e dormir no quintal. Tornara-se a melhor companhia (e maior passatempo) da Nikki. No início, as duas tinham o mesmo tamanho. Dois meses depois, Nikki já estava o dobro dela. Ainda assim, corria assustada quando Soraia, cansada de ter seu descanso interrompido ou o rabo puxado continuamente, arrepiava o pêlo e usava suas garras e dentes.

Soraia

Isabel levantou-se. Era hora de voltar para o serviço. Deu uma última olhada para trás. Soraia deitada, indolente, numa árvore. Nikki olhando, frustrada, para cima. Isabel também levantou os olhos, mais para cima ainda, pensando no Criador de todos. Seu coração transbordava de surpreendente gratidão—Pai, confesso que ando reclamando de vez em quando por causa das estripulias da Nikki. Mas fique sabendo que sou muito grata pela alegria que ela nos dá (e ela nem começou a desempenhar o seu papel de protetora)! O Senhor caprichou mesmo quando criou a nossa Boxerzinha! Ela é muito especial!

Elizabeth Zekveld Portela
Publicado na SAF em Revista, 2º Trimestre / 2004

Sugestões para meditação e/ou atividades

  1. Na história, Nikki alegra e une a família enquanto se prepara para assumir a guarda da casa. De fato, animais de estimação enriquecem o ambiente de um lar e podem servir como canal do amor de Deus. Mas bicho não é gente. Leia Gênesis 2.18-25. Deus viu Adão na companhia dos seres animais e concluiu —Não é bom que o h_____ esteja s___ (18). Ele, então, criou Eva—outro ser humano—para acabar com a solidão de Adão. Planeje aliviar o vazio na vida de alguém conhecido. Isso deve sempre superar o amor que um animal pode receber ou devolver. Converse (ouvindo e respondendo), ore, encoraje, aprecie, exorte, cobre, apóie, presenteie…
  2. Compare a sua compaixão por seres humanos com o amor que dedica a seu animal de estimação. Um bom exercício é de confrontar quanto tempo e dinheiro gasta com ele com o tanto que dedica para ilustrar a misericórdia de Deus (e a qualidade da sua fé!) às pessoas que lhe cercam. Leia 1 João 3.17, 18 e Tiago 2.15-17.
  3. E a Jackie? Todos na família relutaram em tomar a iniciativa para os passos necessários para diminuir o sofrimento dela. Havia sido fiel amiga e defensora deles durante muitos anos. Para complicar, alguns amigos insistiam que seria pecado aplicar a eutanásia animal. Converse sobre isto, com compaixão, lembrando-se do seguinte—O ser humano foi criado alma vivente. O animal não (Gênesis 2.7b).

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