Apenas Seis Palavrinhas

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A ansiedade no coração abate, mas a boa palavra alegra.—Provérbios 12.25

Alguns dias atrás minha irmã me mandou um e-mail contendo um agradecimento da esposa de um antigo professor nosso. Este senhor acabara de passar três semanas convivendo com a igreja e a família da minha irmã, ensinando, pregando e participando de um sínodo. Foi hospedado e ciceroneado por eles e, agora, estava de volta no seu lar, no outro lado do país. Isso me relembrou do impacto, na minha vida, de seis pequenas palavras, faladas por esta senhora que nunca cheguei a conhecer bem.

Assim, meus pensamentos voltaram ao passado — aos tempos quando estudávamos (meu marido e eu) numa faculdade evangélica nos Estados Unidos. O Dr. Oliver era nosso professor de alguns cursos bíblicos—especialmente Filosofia da Fé Cristã (curso em Teologia Sistemática, usando o livro de Louis Berkhof). Nessa capacidade ele teve um enorme impacto na nossa compreensão das doutrinas reformadas—reforçando aquilo que ambos já havíamos aprendido desde crianças. Professor acessível, conversava bastante com meu marido e apoiou sua ida subseqüente ao seminário. Ele fazia parte do nosso dia-a-dia…

A sua esposa, a que escreveu para minha irmã, por outro lado, raramente aparecia na escola. De vez em quando, assistia a programações especiais. Eu a conhecia de vista, mas, sendo muito tímida, nunca me aproximei dela. Entretanto, um dia, creio que foi no meu segundo ano, ficamos lado a lado e ela começou a conversar comigo. Não me lembro do assunto, nem da ocasião, mas penso que devo ter falado algo que refletia a minha insegurança a respeito da minha aparência – magra, alta, acanhada com as pessoas.

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Alta, Magra e Tímida
Eu (com 12 anos e 1,75m), minha irmã e minha mãe, em 1964

As palavras que ela então falou me marcaram pelo resto da vida. Ela disse que sempre me admirava quando me via e falou: You carry yourself like a queen. (Você se porta como uma rainha.)

Imagino que foram palavras que lhe vieram na hora, certamente proferidas sem pretensão alguma de mudar o rumo da minha vida, sem noção do tamanho da minha sensação de inferioridade, do meu anseio por ser valorizada… Pode ser, até, que ela depois se perguntou se não havia estimulado a minha vaidade erroneamente…

Eu, entretanto, me senti tão especial—como se fosse uma nova pessoa. À moça que se achava alta, magra e pouco atraente tinham sido concedidos, por alguém, ares de realeza. A patinha feia virou cisne! Saí daquela conversa transformada de plebéia em rainha—a rainha Elizabeth! E, não me entendam mal, nunca mais deixei de me sentir assim…. Deus fez algo em mim ou por mim naquele momento pois, sem ela falar nada de aparente valor espiritual, Ele usou as suas palavras para confirmar que eu podia ser portadora da minha fé com dignidade. Para fazer verdadeira em mim a imagem da mulher virtuosa nas instruções da “mãe do Rei Lemuel” registradas em Provérbios 31: A força (que eu sabia que tinha) e a dignidade (que tinha mas nem sempre enxergava) são os seus vestidos e, quanto ao dia de amanhã, não tem preocupações (vs. 25). E, com o passar do tempo, aprendi a entender corretamente que o alerta dela sobre a graça e a formosura como sendo enganosa e não era em repúdio a estas qualidades mas uma chamada àquilo que importa muito mais—ser mulher que teme ao Senhor! (vs. 30). (Para que ela se vestiria de linho fino e de púrpura—v.22— se fosse pecado?)

Depois de iniciar esta postagem, gastei um bom tempo tentando fazer uma espécie de psicanálise familiar e eclesiástica para explicar o pano-de-fundo deste momento que acabo de relatar. Mas estava ficando comprido e complicado e resolvi publicar minhas cogitações em outra hora. Resumindo agora—os adultos holandeses na minha família e igreja evitavam elogiar as crianças, com medo que ficássemos vaidosas. Todavia, não se poupavam de criticar e repreender, pois precisavam apontar e arrancar o pecado que sabiam viver no nosso coração infantil/juvenil.

Além disto, a carga negativa que eu recebia de fora (escola e comunidade) era grande. Extremamente alta para minha idade, eu também era magérrima. Portanto, meus colegas gostavam de me apelidar e de me “diminuir”—possivelmente com certa inveja porque me destacava, também, academicamente. Para piorar, não tinha como amenizar ou consertar minha aparência. Primeiro, porque era considerado pecado usar maquiagem e havia tabus para os cabelos também. Em segundo lugar, porque minhas roupas, quase todas, vinham de brechós, e a minha opinião sobre como elas deveriam ser não contava muito. Não pense que eram feias ou que não prestavam. Minha mãe procurava demonstrar muito capricho em suas escolhas e ela tinha um senso do belo, mas simplesmente não cria que deveria ligar para a moda da minha geração e qualquer tentativa da minha parte neste sentido era rechaçada com os vocábulos “vain” ou “vanity” (vaidosa ou vaidade)…

Após ter sido uma criança extrovertida e alegre, por razões que não sei explicitar por completo, tornei-me uma moça bem tímida e envergonhada, sempre procurando agradar, com medo de ser criticada ou ridicularizada, sedenta por aprovação e admiração… Vivia entre dois “mundos”. Em um deles, a minha aparência (supostamente) contava quase nada e as minhas ações eram normalmente fiscalizadas antes de serem apreciadas (em silêncio) ou censuradas (por palavras). No outro, a beleza e o adorno do meu rosto e corpo pareciam vitais para minha valorização.

Quando cheguei à faculdade, entrei num terceiro “universo”. Neste, apreciava-se a beleza (minhas colegas tratavam os cabelos, usavam maquiagem e adornos, combinavam cores) e seguia-se a moda. Mas, ao mesmo tempo, tínhamos instrução cristã e aprendíamos a desenvolver a nossa beleza interior e a equilibrar as duas. Tive que re-trabalhar aquilo tudo, com a ajuda do meu futuro marido, tentando discernir os verdadeiros ensinamentos da Bíblia sobre o assunto. Talvez seja por isto que, depois, penetrei tão profundamente no assunto “adorno”, escrevendo primeiro para uma revista feminina e, em seguida, para um periódico teológico.
Não foi fácil para eu melhorar/atualizar a minha aparência, porque a maior parte do dinheiro que eu ganhava trabalhando na biblioteca da escola ia diretamente para pagar a conta da faculdade. Meus pais também contribuíam para esta conta e pagavam a minha passagem de ida e volta para o Canadá. Não havia “mesada”, nem como pedir mais. Ainda assim, consegui arrumar alguns “bicos” e comprar mais roupas e enfeites. Outras moças me ajudavam, “forçando-me” a tomar emprestado algumas coisas para momentos especiais, dando dicas sobre cores e cabelos. Mas, comparada a muitas delas, eu me achava bem simples e “caipira”.

Foi nesta conjuntura que a Dona Esther me encontrou e me disse aquelas seis palavras. Por que foram tão especiais? Por que elas não me levaram a ser apenas vaidosa, em vez de me fazerem uma crente melhor? Nem eu sei por completo, mas percebo algo importante. Ela havia detectado uma característica em mim que era “completa” em si—que eu havia recebido e desenvolvido sem gastar nenhum vintém. Para o qual eu não precisava empenhar tempo nem dinheiro. Era algo já meu e que eu considerava importante para aqueles que desejavam ser reconhecidos ou impactar o mundo.

Afinal, quando menina, havia herdado da minha tia uma coleção de fotos da realeza inglesa—do tempo em que Elizabeth e Margaret eram apenas menininhas e tiveram que mudar-se para o Palácio de Buckingham quando seu Tio Edward abdicou do trono para casar com uma plebéia americana. Continuei com o hobby, juntando imagens de personagens reais do mundo inteiro e, portanto, eu conhecia a aparência e os nomes da maioria das princesas, rainhas e imperatrizes daquela época. Entre as que me fascinavam, além de Elizabeth e Margaret, estavam a grega Sofia que se tornou rainha da Espanha, as princesas dos países nórdicos, Farah Diba do Irã, Sirikit da Tailândia… Com poucas exceções, elas transpiravam classe e elegância enquanto posavam para as fotos. E eu, agora, havia sido promovida por alguém à categoria delas—das altezas reais.

Também, como leitora ávida, lera dezenas de romances (light) situadas na Europa dos séculos 18 e 19—em que as autoras se especializavam em transportar duques, marqueses, condes e príncipes para fora do seu ambiente normal para se apaixonarem por mocinhas belas, mas pobres. Estas, por uma razão ou outra, viviam longe da “corte”, tendo assim mantido uma pureza e inocência fora do comum que atraia estes belos, bem-formados e bem-vestidos homens (e riquíssimos, é claro).

Mas o que sempre transparecia era que, além da beleza e inocência delas, havia algo mais—algo quase intangível que comprovava suas origens nobres mais de qualquer atestado de nascimento. Era só olhar e ouvi-las para ter certeza disto. Elas tinham uma maneira elegante de sentar e levantar, e uma leveza no seu andar. Cada movimento das suas cabeças era gracioso, suas vozes eram moduladas e suaves, os gestos refinadosComandavam o respeito e o amor de muitos apenas pelo seu jeito de ser…

Os fidalgos duques (ou príncipes, marqueses ou condes–nunca viscondes!) relutavam em se comprometer pois sempre aprenderam que nobreza tinha que casar com nobreza. Seguia-se um embate interno entre mera paixão e amor real, com as moças sendo quase seduzidas, mas, no fim, salvas pela revelação que eram, de fato, aristocratas. Apenas então viviam felizes para sempre, com maridos que, depois de anos de relacionamentos levianos e sem compromisso, agora tinham encontrado “aquela” que iria lhes completar pelo resto da vida. Bobagem? Na maior parte, sim. Mas isto não vem ao caso aqui. O que importa é que estes textos haviam enchido minha cabeça com o sonho de realmente ser reconhecida como uma pessoa fina e elegante, apesar das minhas origens relativamente humildes.

Agora, através do meu porte, da minha postura, alguém havia percebido um sinal de realeza em mim, uma qualidade que ressaltava não a minha altura, mas um tipo de presença que beirava o majestoso. A visibilidade que tanto me preocupara antes, agora tinha uma faceta positiva. Apesar de ter crescido e trabalhado numa fazenda…. Apesar de ser filha de imigrantes pobres… Apesar de ter vivido sempre sendo diferente da maioria… De repente, me vi através dos olhos de uma senhora elegante, feliz e respeitada—e vislumbrei um futuro digno para mim também. Com isto, parti para tentar conquistar outros atributos como graciosidade, charme, bom gosto, boas maneiras e elegância. Ciente que o meu recém-descoberto “porte de rainha” de pouco valeria se não fosse acompanhado por um coração bondoso e atitudes cristãs.

Dona Esther nunca me aconselhou ou me escreveu. Nem acompanha a minha vida. Não sabe quantos filhos tenho, se meus pais estão vivos, como e onde sirvo a Deus… São várias as mulheres que dedicaram muito mais horas ao meu bem-estar e crescimento. Mas a sua memória será sempre preciosa para mim.

Nunca me esqueci! Até hoje, quando cansaço, desânimo ou dores querem se manifestar no meu rosto ou no meu porte, aquelas palavras me vêm à mente: fico espigada, ajeito a postura e tento relaxar as minhas feições—lembrando-me que sou filha e representante do Rei dos Reis. Deus me ajudou, desde então, a tirar muito mais o foco de mim. Mas, naquele momento, Ele foi misericordioso e permitiu que aquela mulher conseguisse identificar e encorajar o valor que Ele mesmo me dava e dá, como sua filha adotada—portanto, uma princesa.

Não seria bom se todos nós deixássemos para trás uma herança assim—de pelo menos uma pessoa abençoada através das nossas palavras espontâneas? Eu pretendo traduzir esta postagem e pedir para minha irmã re-enviá-la para Dona Esther. Julgando pelo jeito que escreveu a cartinha, tornando-se porta-voz bem-informada do marido que voltara esgotado, mas muito contente e grato pelos momentos que passou e o carinho que desfrutou, ela continua sendo benção para muito mais pessoas, começando pelo marido—pessoa a quem já complementava quando eu a conheci, há quase 40 anos.

Na próxima postagem, gostaria de partir desta recordação para refletir um pouco mais sobre comunicação no lar—sobre o que foi bom na criação que recebi e sobre o que tentamos mudar… E outras coisas que ainda estou tentando decifrar—que talvez entenda apenas no céu…. Lembrando que, de fato, somos todos limitados (pelo que recebemos e pelo que somos) e que isto traz conseqüências. Mas sabendo, também, que, quando somos filhos e filhas de Deus, vamos sendo libertos dos laços que nos prendiam (não por meramente existir, mas por ter nascido de novo através do Filho que se declara nosso irmão).

Somos capacitados a começar de novo, cultivar novos hábitos e trilhar novos caminhos—alegrando o Rei nosso Pai e também aos nossos filhos, irmãos e pais. Não apenas no dia depois da nossa conversão, mas dia após dia, crescendo, melhorando, mudando… Pedindo perdão e recomeçando…. Abençoando. E sendo abençoado…

Betty

4 Comentários a “Apenas Seis Palavrinhas”

  1. grace disse:

    Você é a rainha do nosso lar Mãe! Fico muito feliz que você e papai nos criaram de um modo diferente, pois minha percepção é que sempre cresci num ambiente cheio de amor, elogios apropriados e comentários corretivos nos momentos devidos. Amo você!

  2. Anderson disse:

    Preciosa irmã Betty. “Apenas Seis Palavrinhas” me tocaram bastante.
    Puxa…
    Pode se sentir privilegiada, irmã. Seu propósito de fato foi alcançado. Pois o SENHOR já tem te usado como um poderoso instrumento abençoador. Para mim, com certeza. Pois reconheço muitas vezes essa identificação em mim daquele tipo de julgamento errôneo e deturpado que fazemos de nós mesmos e que nos afetam tão profundamente. Como facilmente tranformamos a Imagem de DEUS que está em nós. Nós como “coroa de sua criação”, revestidos com o Manto da Justiça de CRISTO, lavados no Sangue do CORDEIRO, e nos considerando a nós mesmos ainda como revestidos de trapos da imundícia.
    Também lamento muito por ainda prevalecer em nosso meio essa falta de altruísmo, de espontaneidade, na busca pela honra uns dos outros. Nós que fomos agraciados com uma sensibilidade e uma percepção de poder enxergar mais do que qualquer outro povo as virtudes e os traços característicos da realeza de DEUS em nós.
    Como “apenas seis palavrinhas” podem fazer total diferença!

    O SENHOR JESUS esteja contigo e sua família, hoje, amanhã e sempre preservando-os no Seu Caminho e continue lhe usando como um instrumento poderoso em SUAS MÃOS.
    Amém.

    P.S. A sra me conhece (pelo menos acho que ainda lembra). Sou um jovem (…pelo menos na aparência vivem me iludindo 🙂 ) membro de uma I.Presbiteriana aqui em Manaus, de um grande Pr e amigo seu. A sra nos chamava de “proto-diáconos” num evento em que eu trabalhava, muito conhecido aqui em nossa região. Pena que não tive a chance de ter sido seu aluno quando criança.

  3. Tânia Cassiano disse:

    Betty,
    Seu texto, nos faz refletir, como podemos marcar a vida das pessoas
    definitivamente. Como devemos ser cuidadosas, generosas, sinceras,
    no tratar diário. Que palavras impensadas, podem magoar, marcar de
    maneira negativa a vida de alguém.
    Que tenhamos a sabedoria, dada por Deus, para fazermos a diferença
    e que sejamos bençãos na vida de alguém. Peço à Deus que me ajude.
    Deus a abençoe, rainha.
    Um abraço
    Tânia

  4. claudia andrade disse:

    ola dona betty,tudo bem sou filha de lucielma neta de cremilda. lamento informala que minha mãe faleceu no dia 5 de janeiro de 2013.

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