Vou, mas Fico

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(Acompanha a Poesia: Memórias)
Não me desampares, pois, ó Deus, até a minha velhice…, até que eu tenha declarado à presente geração a tua força, e às vindouras, o teu poder — Salmo 71.18

Isabel desligou o telefone, pensativa. A sua vizinha havia telefonado para saber da sua saúde, em primeiro lugar, e depois para pedir um favor. E que favor!

— Isabel, a Sílvia está tão desanimada. Você não poderia ligar para ela?
— Eu , D. Meire? Por que eu? Sabe, eu só conheço a sua irmã de vista. Acho que nunca conversamos. Como vou chegar para ela e falar sobre um problema deste? Ela sabe da gravidade da situação dela?
— Sabe mais ou menos. Está precisando de encorajamento e eu pensei em você. Sei que você entende a situação dela melhor do que muitos. É disso que ela precisa.
— Não sei não, D. Meire. Tem hora em que nem sei o que falar para mim mesma, muito menos para os outros. Posso até imaginar as preocupações que devem estar passando pela mente dela, mas nem por isso ela vai querer se abrir para uma pessoa estranha. Nem deve! Mas vou pensar sobre isto e orar…

Sílvia era uma senhora de meia-idade, esposa de pastor, dinâmica, esbelta e bonita. Havia optado fazer quimioterapia para tratar um câncer inoperável. Os médicos, entretanto, não estavam otimistas sobre a possibilidade de cura. A saúde dela havia sido alvo das orações de várias igrejas. Isabel também já vinha orando por ela.

Depois de alguns dias, Isabel criou coragem e telefonou. Para sua surpresa, a conversa fluiu facilmente. A quimioterapia havia afetado a coagulação sangüínea da Sílvia e causado uma trombose na perna. Era exatamente daquilo que Isabel estava se tratando. Compararam sintomas e tratamento, marcas de meias elásticas, as novas rotinas de vida… Se Sílvia estava abalada, não deixou transparecer. Se Isabel passou conforto, foi mais pelo ato de telefonar do que pelo que foi dito. Prometeram orar uma pela outra. Desligaram. Isabel se sentia aliviada. Missão cumprida! Mas ela ficou pensando naquilo que poderia ter falado, se houvesse surgido a oportunidade. Por causa de uma embolia pulmonar, ela também havia enfrentado a morte há poucos meses. Ainda estava de repouso forçado, avaliando os danos, lutando para recuperar a saúde, equilibrando as medicações, esperando uma cirurgia…

Fazia poucos meses que uma experiência sua havia sido publicada.* Parecia uma eternidade. Ela nem se sentia mais a mesma pessoa. E não era mesmo! A Isabel daquele artigo estava apenas cansada. Orava e logo enfrentava, perseverava, superava… Voava pela casa, sem desperdício de movimentos. Dirigia e comprava, levava e buscava, se reunia e visitava, escrevia e ensinava … A Isabel de agora estava totalmente debilitada. Movia-se lentamente, deixando as tarefas que lhe cercavam para serem realizadas por outras pessoas. Havia passado por uma fase em que não agüentava ouvir os problemas de ninguém, em que nenhuma comida tinha sabor, nenhum livro ou filme a atraía e a insônia reinava.

Sentia-se traída pelo próprio corpo. Não sabia mais interpretar as sensações e dores que lhe perturbavam, nem lidar com elas. Pela primeira vez na sua vida, o rebuliço físico estava afugentando a sua paz espiritual. Ficaria boa novamente? Ou não? E se não ficasse? Ela tinha certeza que iria para o céu pois cria firmemente em Jesus como seu salvador. O que questionava era o cronograma de Deus.

Veio à sua mente a vaga memória de um versículo bíblico. Algo sobre ficar velho e falar sobre as bênçãos de Deus para os netos… Folheando a sua Bíblia, encontrou o que queria no Salmo 71. Não me desampares, pois, ó Deus, até a minha velhice…, até que eu tenha declarado à presente geração a tua força, e às vindouras, o teu poder (18). Era isto que ela queria! Ela queria viver bastante para ter um impacto em muitas pessoas, especialmente na sua família. Mas se não vivesse…

Sentada no sofá, com a perna doente para cima, Isabel olhou ao seu redor. Viu a TV, o vídeo, o som, os álbuns de fotografias enfileirados em cima da estante. De repente, enxergou como era uma mulher privilegiada. Vivia numa época em que Deus havia aberto um enorme leque de possibilidades de comunicação. Para o autor do Salmo 71, isto era possível quase unicamente se a pessoa estivesse fisicamente presente. Agora, entretanto, era possível testemunhar da força e poder de Deus estando longe—tanto na distância (de outra cidade ou país através de telefone, fax, ou pela Internet) quanto no tempo (via fotos, fitas, vídeos, cartas, recortes, escritos…) Não somente ela e a Sílvia, mas qualquer pessoa, poderia se empenhar em criar e conceder um “legado”, uma “herança” de memórias e lembranças visíveis, audíveis e legíveis, nos dias, meses e anos antes da hora da sua partida eterna.

Seus dedos deslizaram pelo relevo da capa do caderno ao seu lado. Era um caderno bonito—um de meia dúzia que havia comprado numa liquidação—e bastante útil, agora que não podia ficar muito diante do computador. Começou a escrever furiosamente e, quando um pensamento rimou com outro, surgiu a idéia—talvez, se os compartilhasse em forma de poesia, a sua percepção poderia ser transmitida de modo mais suave e agradável. Mandaria um caderno com uma poesia para Sílvia. Sugeriria que ela o usasse em conjunto com fotos e lembranças já acumuladas para registrar as coisas que evidenciavam a graciosa mão de Deus trabalhando nos eventos e detalhes da sua vida. O livro poderia ser ponto de partida para juntar idéias, impressões, listas, lembretes, anotações, rascunhos, esboços… Poderia ser substituído por outros; por aqueles com páginas de plástico onde se podia inserir documentos ou trabalhos originais; por aquelas caixas atraentes que enchiam as prateleiras das papelarias—uma para cada filho, para cada neto… As possibilidades eram enormes!

No próximo domingo, levou o caderno com uma carta explicativa e a poesia, coladas nas primeiras páginas. Pretendia enviá-lo através do filho da Sílvia, seu professor de Escola Dominical. Estava sentada num banco posterior com a perna elevada. Logo depois da oração, a própria Sílvia veio sentar-se, na mesma posição, ao seu lado. “Vou seguir seu exemplo”, sussurrou. Durante a chamada, Isabel entregou o presente embrulhado. Sorriram uma para a outra. Sílvia estendeu a sua mão para o lado e, durante alguns momentos, ficaram de mãos dadas—até que o professor mandou procurar um versículo na Bíblia. Eram duas irmãs em Cristo, procurando a presença de Deus no seu templo, ansiando para perceber o amor dele, e propósito e paz no sofrimento. E Isabel se deu conta que, naquela semana, Deus havia lhe permitido tudo isso, através de um simples caderno. Ao repassar a sua vida mentalmente, tinha percebido e procurado transmitir a grande fidelidade do seu Deus.

—Pai, não sei quanto tempo o Senhor há de me dar aqui ainda, mas disso eu sei—não me sinto mais abandonada e esquecida. E quando chegar a hora para partir, eu irei, mas graças aos meios que tu me deste, o meu testemunho ficará. Ficará não apenas nas mentes daqueles que me conheceram, mas também de modo visível, audível e legível para “as gerações vindouras”. Estarei ausente, mas também presente. Vou, mais fico!

Elizabeth Zekveld Portela
Publicado na SAF em Revista, 1º Trimestre / 2001,
juntamente com a poesia “Memórias”

*“Eu me Pouparei ou me Gastarei”, SAF em Revista, 4º Trimestre, 1999.
Outras passagens relevantes: Lamentações 3:19, 21-25; Salmo 77: 11-14; Salmo 102 (esp. 1, 24, 27,28); Salmo 143.
Observação: Para certas pessoas, um pequeno gravador pode substituir um caderno. Para quem tem computador, as opções para organizar e registrar as lembranças da vida são virtualmente ilimitadas.

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