Reflexões sobre Hospitalidade e Fraternidade (5)

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Depois de descrever a boa acolhida que desfrutamos numa recente estadia em Manaus e de gastar mais três postagens examinando perspectivas e experiências bíblicas sobre hospitalidade, estou me preparando para deixar as reflexões bíblicas e escrever partindo do ponto de vista da esposa de um preletor que viaja freqüentemente.

De fato, comecei a série escrevendo um texto que ainda não publiquei. Entretanto, percebi que eu precisava consolidar a minha própria compreensão do assunto, para determinar se as minhas impressões e atitudes seriam verdadeiramente bíblicas. Pois o ser humano sempre carrega consigo uma tendência egoísta que o cega para coisas que parecem óbvias para o outro lado de um relacionamento, ou de uma interação. Portanto, comecei a procurar (e compartilhar) um contexto primeiro para que aquilo que eu concluísse fosse confirmado ou modificado para ser mais do que simplesmente “eu acho”. Vejo, agora, que para fazer a transição do teórico para o prático, preciso falar de mais um personagem da Bíblia—o Filemom.

A carta do apóstolo Paulo a Filemom é uma missiva curta, mas rica em detalhes. Permita-me lançar meu “olhar feminino” sobre ela e ir um pouco além da visão lacônica da maioria dos comentaristas masculinos. Lendo com cuidado, creio ser óbvio que a amizade de Paulo com este senhor foi firmada através de um convívio próximo, provavelmente dentro do seu lar numa relação hospedeiro-hóspede. Esta impressão é provocada já nos primeiros versos, quando ele saúda familiares deste por nome, e é depois confirmada pela conclusão, onde pede para Filemom preparar um aposento para ele porque crê que vai ser restituído a eles.

Esta minha compreensão é óbvia para qualquer pessoa que venha desarmada à leitura desta carta e que tenha alguma experiência com a construção e manutenção de relacionamentos. Mas, depois de ter lido o texto bíblico e de ter escrito a maior parte das minhas observações, me dei conta repentinamente que eu havia aprendido num curso sobre Colossenses e Filemom que Paulo nunca esteve em Colossos. Li a carta novamente e pensei, não é possível! Paulo tem que ter convivido com Filemom. Se não foi em Colossos, então foi numa outra cidade. Ou talvez durante uma viagem (terrestre e/ou marítima)? Não se escreve uma carta com tanta afeição para alguém de quem apenas ouviu falar. Se fosse hoje em dia, poderiam até se conhecer mais ou menos bem por carta/e-mail mas as cartas demoravam muito a chegar naquela época. Duvido que laços tão afetuosos poderiam resultar de uma correspondência esporádica, especialmente entre homens que tendem a focar no essencial, sem tocar no emotivo.

Agora sugiro que leia a carta a Filemom e observe. Paulo declara que ora sempre por Filemom (4). Pense bem. Por quantas pessoas você ora sempre? Se você for “mero ouvinte”, existe algum missionário, pastor, palestrante ou pregador com quem você nunca conviveu, que apenas ouviu ou conversou com ele alguma vez, pelo qual você ora sempre? Agradecendo e pedindo…

Se você for o missionário, pastor, palestrante ou pregador itinerante, existe alguma pessoa que você encontrou nas suas andanças pelo qual você ora sempre? Ou frequentemente? Ou até, pelo menos, de vez em quando? E que você sabe o nome da esposa e de algum dos seus filhos? Como foi que estas pessoas conseguiram se destacar de tal forma na sua mente, para que você fale delas nas suas preces ao Seu Pai celestial?

Notou como Paulo o conhece bem? As suas palavras não são apenas resultado de um encontro casual ou de ouvir falar, pois ele se entusiasma a respeito da sua fé, bondade, amor, beneficência….

Percebe como o apóstolo intercede pelo escravo Onésimo como de irmão mais velho para irmão mais novo? Veja como ele confia no consentimento e anuência do Filemom enquanto respeita, entretanto, a sua autonomia. Paulo sabe que é importante para a continuação do precioso relacionamento que Filemom não faça nada por obrigação, mas de livre vontade (14). É apenas entre parentes próximos ou grandes amigos que podemos esperar que uma forte pressão não acabe sendo interpretada como coação. Se, portanto, me considere companheiro, recebe-o, como se fosse a mim mesmo (17).

Sabemos que Deus havia dado a Paulo autoridade apostólica. Entretanto, ele não andava por aí exigindo favores pessoais e financeiros comandando àqueles que seguiam a Cristo (e, portanto a ele, como “ungido de Deus”—como fazem alguns atualmente), dizendo que eles tinham que fazer isto ou aquilo. Especialmente quando era algo que não era especificamente ligado a uma ordem divina. Nos dias de hoje, às vezes, temos a noção que o povo crente olhava para Paulo como uma espécie de semi-deus—que era só ele chegar e todo mundo obedecia. Que era só ele pedir e todo mundo fazia.

No entanto, apesar da sua unção pelo Espírito Santo, Paulo continuava sendo um ser humano bem parecido conosco que, normalmente, tinha que ganhar a confiança de pessoas pensantes, sendo esta seguida pela afeição, às vezes. Tenho certeza que eram poucas as pessoas que tinham uma amizade tão forte com o Paulo quanto aquela que esta carta nos revela.

Portanto, quando Paulo lhe diz para preparar um aposento, é porque ele confia que Filemom está tão ansioso pelo re-encontro quanto ele. Ele sabe que Filemom está orando pela volta, pela “restituição” de Paulo (22). Cada um está almejando compartilhar pessoalmente as situações e eventos do período em que estiveram separados. Desejando contar as alegrias e tristezas, as dúvidas e desafios. Querendo aconselhar e ser aconselhado. Esperando conversar e compartilhar, rir e chorar… E ter grande alegria e conforto no amor demonstrado… (7). Pedindo a Deus a graça de serem colaboradores (1) lado a lado novamente, a serviço do reino.

Pessoalmente, eu já ouvi muitos pregadores, mas apenas uns poucos moram no meu coração. Quase todos esses foram hospedados por nós, e, interessantemente, a maioria acompanhada pela esposa. Por alguma razão, o valor do homem como intelectual e líder espiritual fica autenticado quando a sua mulher gosta dele e quando percebemos que ele a valoriza também. (Pelo menos, no que diz respeito a mim).

Também já visitei uma abundância de igrejas em muitas cidades—encontrando, almoçando, jantando com inúmeras pessoas. De quem é que me lembro? Quais são as que moram no meu coração? São aquelas que nos hospedaram, que nos levaram para sua casa. Familiarizamo-nos com a sua família, com o bairro em que vivem, com a sua morada (como ela é ou como eles gostariam que fosse)… Aquelas que tivemos oportunidade de ver a interação com seus filhos (e/ou seus bichinhos de estimação), onde olhamos as fotos daqueles que lhes são queridos e pudemos conhecer um pouco da sua história, das suas lutas, dos seus sonhos, dos seus feitos, do seu ministério…

Ao sermos hospedados, admiramos, in loco, os talentos artísticos da família nos objetos criados para enfeitar a sua casa ou para presentear ou vender. Compartilhamos suas refeições, apreciamos suas aptidões e seus gostos musicais… Sentimos seu carinho como irmãos em Cristo e ficamos gratos. Eu e meu marido.

É verdade que somos todos comandados a amar o nosso próximo, mas o amor que é sentimento é algo que se transforma em carinho, estima e afeição através da convivência, do olho no olho… Surge através do falar e ouvir, mediante o perguntar e responder, em experiências compartilhadas e através de bondades oferecidas e recebidas…

O amor que é sentimento aparece quando nos abrimos aos poucos para compartilhar o humor, sorrindo e rindo juntos, através de relatos espirituosos e de diálogos demorados, num ambiente mais próximo e informal. Neste convívio, lado a lado, podemos desenvolver e, de repente, perceber uma crescente e preciosa sintonia entre nossas personalidades.

O amor que é sentimento se revela quando nos abrimos às dores alheias; quando procuramos nos certificar do bem-estar daquele que antes era apenas “conhecido” nas horas de dificuldade; e quando sentimos alegria por ter-lhe acontecido algo bom ou especial. Podemos até surpreender a nós mesmos quando surge uma vontade de ajudar, de pessoalmente aliviar ou tranqüilizar, e quando vem uma decisão imediata de levar o assunto ao nosso Pai celestial em oração.

O amor que é sentimento se concretiza quando, ao surgir um problema na vida do amigo, dispomo-nos a sermos sacrificiais, até à distância. Escrevemos, telefonamos, intercedemos, compartilhamos com quem talvez possa ajudar…

Tenho tido experiências pessoais, nesse sentido. Refletindo sobre esta semana que passou, percebo que quatro dos e-mails que escrevi foram para pessoas que conheci unicamente através de um relacionamento hospedeiro-hóspede. Com três (dois casais e uma senhora) fomos os hospedeiros, enquanto fomos hóspedes de um casal que mora em outro estado. Três contatos lidavam com doenças e cirurgias, a outra parabenizei pela primeira gravidez. Não são pessoas com quem me relaciono regularmente, como faço com meus filhos e irmã, por exemplo. Mas quando elas (a maioria pessoas discretas) têm tristezas ou alegrias que querem compartilhar com amigos, elas nos escrevem. E nós idem. Oramos. Depois perguntamos. “Como foi?” “Como vocês estão agora?” E aí comentamos uma experiência parecida ou compartilhamos fatos da nossa própria vida. E nos aventuramos a dar conselhos e aceitar aconselhamentos de maneira que hesitaríamos em usar com as pessoas com quem lidamos regularmente. É a família de Deus ao redor do globo, com Deus nos dando o presente de amor que é sentimento—um relacionamento formado de uma maneira raramente apreciada, mas muito efetivo— através da hospitalidade.

Nem todos que encontraremos, é claro, serão Paulos… Nem todos serão Filemons… Mas, ainda assim, Deus nos dá claras indicações na Bíblia que Ele quer que sejamos hospedeiros. E de bênçãos que resultaram para personagens bíblicas quando fizeram isto—tanto para as que hospedavam quanto para aquelas sendo hospedadas. Da próxima vez, como disse no começo desta postagem, tentarei falar partindo do ponto de vista da esposa de um preletor que viaja frequentemente (e dos nossos amigos palestrantes). Pretendo fazer observações que, espero, não lhes desencorajarão, mas que poderão fazer com que o convívio seja memorável apenas por seus detalhes agradáveis.

Betty

(As Reflexões continuam aqui)

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