Evitando?… Ou Aprendendo a Apreciar?…

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Faz tempo que não publico uma “Crônica de Isabel” (tem uma coleção de crônicas sobre ela postada nos arquivos de março e abril de 2006). Aqui vai uma, para matar as saudades…

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Ela é uma senhora baixinha com o rosto bem redondo. A testa parece grande pois os longos cabelos grisalhos foram puxados e amarrados por trás da cabeça. Uma tiara da mesma cor ajuda a segurá-los no lugar. A roupa é simples, mas limpa. Assídua nos cultos, sempre se senta bem na frente. Isabel imagina que ela não sabe ler pois nunca manuseia a Bíblia ou um hinário. Mas balança a cabeça e reage enquanto o pregador ou o professor fala, obviamente atenta. Sempre está sozinha.

Ao fim da Escola Dominical, enquanto Isabel conversa com amigos e irmãos no salão atrás do templo, a Dona Josefina aparece de novo. Paira no limiar da sua visão, lá no canto, quieta, apenas observando… Não, é mais do que observando… É como se estivesse espreitando… Isabel percebe que está na mira dela.

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A mão direita, enrugada, descansa em cima do zíper da bolsa que carrega no ombro do braço esquerdo. Isabel sabe o que está dentro daquela bolsa. E fica incomodada…

Dentro da bolsa, além da carteira de identidade, o cartão do ônibus e mais algumas coisinhas, está um saco de plástico transparente embrulhando algumas toalhas de prato. Foram feitas de pano de saco embranquecido. Embaixo de uma estampa meio desbotada, “cafona” para seu gosto, tem um bico de crochê que foi Dona Josefina que fez. As cores nem sempre combinam entre si.

Isabel também sabe o que Dona Josefina está pensando. Cuidadosamente, ela vira seu rosto um pouco mais na outra direção. É preciso evitar o contato visual. Fala compenetrada ou animadamente, com um irmão e depois com outra irmã, enquanto procura não dar brecha para ser abordada. Isabel já comprou as toalhas várias vezes. Quase sempre sem querer. Já tem toalhas de prato suficientes. E bem mais bonitas. Será que escapará desta vez?

Não, desta vez não. Quando Isabel se vira para sair, Dona Josefina está bem aí, com a mão em cima da bolsa, a postura bem reta e quase desafiante; a voz firme procurando disfarçar o tom de súplica no seu falar e quase escondendo a esperança do seu olhar… “A senhora não está precisando de pano hoje?” “Hoje não, irmã. Fica para outra vez, está bem?” A outra dá um fraco sorriso. A mão solta a bolsa e ela se vira para sair.

Isabel também sai, pensando naquilo que acaba de fazer. Sente-se mal e confusa… Frustrada… A percepção do desapontamento da Dona Josefina perdura. Sente o misto de vergonha e coragem que acompanhou aquela abordagem. Perguntas ficam martelando na sua cabeça—Será que aqueles dez reais que costumo pagar por três toalhas farão muita falta desta vez? Será que Deus realmente quer que eu faça um estoque delas? Elas enxugam bem, mas a gaveta está entupida até não caber mais! Só se eu encontrar um instituto de caridade para doá-las! O que já fiz, por sinal… Mas, se vão entrar na água sanitária, por certo, p’ra que colocar bico colorido?
Entra no carro mas não diz nada ao seu marido sobre o que lhe incomoda. Ela já sabe o que ele vai dizer pois Neto tende a ser mais compassivo do que ela e, portanto, mais generoso. —Compre, Isabel. Coloque na sua gaveta de presentes. Um dia você vai encontrar alguém para quem possa dá-las.

Isabel aprecia isto nele. De fato, é muito bom ser esposa deste homem que raramente discorda quando ela sugere que ajudem alguém. Talvez seja aí o “x” da questão! Existe uma diferença entre oferecer ajuda (ainda que anonimamente) e sentir-se constrangida. Quase semanalmente. É esta pressão, esta quase perseguição que lhe incomoda… Mas, se fosse ela a Dona Josefina? O que ela faria diferentemente? Então Neto começa a contar uma conversa que teve, e Isabel para de pensar em Dona Josefina…

No domingo seguinte há classe única na Escola Dominical e Isabel e Neto acabam sentados bem próximos à Dona Josefina. A lição é sobre a origem e o propósito do trabalho. Em algum momento o pastor fala sobre a dignidade que este confere ao ser humano. O olhar de Isabel cai em Dona Josefina, sentada sozinha no banco, ao lado da sua bolsa. De certo, tem mais toalhas abrigadas nela. Pedaços de pano branco que descansaram no colo da Dona Josefina enquanto suas mãos manusearam agulha e linha para conferir-lhes uma borda colorida. Várias horas de trabalho, mais viagens para as lojas para comprar os materiais… Tudo isto para ganhar três reais por peça…

A lição prossegue mas Isabel continua olhando para Dona Josefina. Realmente olhando, enxergando cada detalhe da sua aparência, e cada nuance das expressões do seu rosto enquanto escuta aquele professor que está falando sobre algo que ela deve conhecer muito bem, na prática do dia-a-dia… Nos muitos dias da sua vida. Quantos anos terá ela? Setenta-e-poucos? Isabel percebe que não sabe nada sobre ela. Como foi que chegou a se congregar na igreja?… Como é que chega até à igreja? De ônibus? De carona?

Qual terá sido a profissão dela? Lembra-se vagamente de uma conversa em que soube que Dona Josefina aprendeu a fazer as toalhas no “Grupo da Melhor Idade” da Igreja. De quanto dinheiro ela dispõe por mês, para se sustentar?

Será que é viúva?… Será que tem filhos?… Será que existe alguém que lhe dá um beijo de vez em quando? Um abraço? Um presente? Uma pessoa cujos olhos brilham quando ela se aproxima? Ou será que a maioria é como Isabel—querendo correr na outra direção, apesar de chamá-la de irmã? Querendo evitá-la como se fosse um estorvo em vez de saber apreciá-la como artesã… Sem percebê-la como uma pessoa digna de respeito, especialmente por ser trabalhadora…

Algo está errado. Algo precisa mudar. Mas o quê?… E como?… Isabel pensa novamente na gaveta abarrotada com toalhas de prato e de mão. Muitas que não combinam nadinha com a cozinha do apartamento que atualmente alugam. É uma cozinha boa mas ela nunca teria escolhido as grandes flores salpicadas em alguns azulejos das paredes. São alaranjadas, de um tom bem vivo. Da cor daquele envelope para missões deitado no encosto do banco na frente dela. De repente surge uma idéia e ela estica a mão para pegar o envelope. Será que vai dar certo?

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No fim da aula, Isabel se vira e toca no braço da Dona Josefina. Esta lhe olha surpresa, um pouco desconfiada. Por que será que aquela mulher, sempre tão distante, agora quer falar com ela.
–Dona Josefina, eu gostaria de encomendar três toalhas da senhora. Pode ser?
A pequena mulher parece crescer. Examina o rosto de Isabel com olhos vivos e curiosos e responde, –Pode.

Isabel então explica que gostaria que o bico ao redor fosse alaranjado, da cor do envelope. Dona Josefina pega o envelope e esclarece que sai todas as segundas para comprar material. E que vai procurar daquela cor. Abre a bolsa para mostrar seis toalhas embrulhadas em plástico. Aponta um bico cor-de-rosa viva.
–É mais ou menos assim?
Isabel engole seco. O que foi que ela foi inventar? Vai ver que a mulher é daltônica!
— Não. Mais assim, como estas duas. Mas mais vivo. Se quiser, eu já posso ficar com elas e depois a senhora prepara mais três para mim da cor do envelope.
— Estas não. São uma encomenda.
— É mesmo? Ótimo. Então fica para depois.
E ela pensa: —Interessante! Quem será que encomendou? Será que ela realmente gosta?
Mas não pergunta.

Naquela hora, o pastor auxiliar se junta às duas. Ele, já um senhor de idade, dá um abraço na Dona Josefina e comenta para Isabel:
— Esta aqui é uma das matriarcas da igreja—creio que só perde para Dona Vanda na idade.
— Ah é. Quantos anos a senhora tem?
— Oitenta-e-quatro. E vou fazer oitenta-e-cinco na outra semana.
— De verdade!? Pensei que a senhora fosse bem mais jovem.

Uma outra pessoa se aproxima para conversar com Isabel. Ela olha para Dona Josefina, que está guardando o envelope na bolsa. Esta sorri, ainda meio surpresa com este novo tratamento.
— Domingo que vem eu trago os seus panos!
— Está certo. Mas eu não quero que a senhora ande muito para procurar a cor. Amarelo queimado, como naquelas duas toalhas, também serve, está bem?
— ‘tá. Mas eu vou achar a cor que a senhora quer.
E Dona Josefina sai do templo, de porte ereta e com passos determinados, enquanto Isabel continua batendo papo com a outra irmã.

Mais tarde, Isabel compartilha a experiência com seu marido. –Neto, de repente me dei conta que eu precisava parar de ser vítima, de ser passiva… Vi que havia uma outra opção. Eu posso canalizar o talento dela para algo que eu preciso. Vou tentar, pelo menos. Duvido que vá ser algo que goste… Mas tudo bem. Não estou certa se ela enxerga mais as cores—se já enxergou na vida. Você sabia que ela tem 84 anos? Quase 85?…

No próximo domingo, ambas estão na igreja. Dona Josefina, bem na frente, ao lado da sua bolsa. Isabel com marido e sogros, logo atrás. Dona Valdete (que também tem 84 anos) já está a par da encomenda e Isabel se curva para o lado e sussurra. —Olhe, Mamãe. É ela a velhinha dos panos de prato.
—‘Tou vendo. Será que ela já conseguiu fazê-las?
—Vamos ver.

Depois da lição da Escola Dominical, Isabel é abordada por várias pessoas. A Dona Josefina chega ao lado do seu banco e espera. Quando seus olhares se cruzam, ela acena com a cabeça em direção ao fundo da igreja.
—Vamos nos ver no salão?
—Está certo. Chego já aí.

O salão está cheio quando Isabel finalmente entra nele. Muitos irmãos ainda estão colocando assuntos em dia. Tem pessoas olhando os livros na biblioteca… Alguns jovens estão fazendo a matrícula para o acampamento de carnaval, outros estão alugando filmes evangélicos… A Dona Josefina está no mesmo lugar de algumas semanas atrás. Está quieta como daquela ocasião. Mas há algo diferente. Desta vez, ela irradia expectativa… Não está espreitando uma vítima… Está esperando sua freguesa

Ainda assim, ela está um pouco preocupada. Será que Dona Isabel vai gostar do trabalho dela? Dos panos que ela escolheu? Da cor da linha que comprou?… Do acabamento que deu em cada um? Lá, no canto, onde há uma mesa, ela faz questão de abrir os panos um por um.

Isabel passa a mão por cima do pano com uma estampa mais caprichada do que as outras e Dona Josefina diz, com um olhar meio temeroso.
—Este aí foi mais caro para comprar. Mas achei que era mais bonito.
—É o mais bonito mesmo. Mas eu gosto dos outros também. A senhora caprichou… E é esta a cor que eu queria. Muito obrigada!

Dona Josefina sorri, aliviada, enquanto pega duas notas de dez reais da mão de Isabel. Olha nos olhos da compradora dos seus panos e diz – É bom quando a gente pode trabalhar para completar a “sustança”…

4 Comentários a “Evitando?… Ou Aprendendo a Apreciar?…”

  1. Carlos Henrique F. Borges disse:

    Betty,

    Que lindo ler histórias do que Deus é capaz.
    Pelo Espírito Santo, ele não mudou a situação mas o coração!

    Oh Deus meu, pai santo e glorioso da-me coração sábio para com as Dona’s Josefina’s do meu caminho, tenha misericórdia do meu coração endurecido pelas cores fortes dos panos de prato da vida! Isto, não para mim, mas para Te glorificar! Amém.

    Em Cristo
    N’Ele só N’Ele
    Carlos Henrique.

  2. betty disse:

    Olá, Carlos Henrique:
    Agradeço as palavras e a oração. Achei bonita e perspicaz a sua observação. “Pelo Espírito Santo, ele não mudou a situação mas o coração!” Agora vamos ver como vai ser o convívio nas semanas que virão….! Será que Isabel vai encomendar mais panos…?
    Abs, Betty

  3. leciley disse:

    Olá querida irmã.
    é maravilhoso ser supreendida por esta mensagem q tanto fala ao meu coração duro com as irmãs mais idosas da igreja (perdão Senhor)..
    obrigada por esta mensagem
    que Deus a bençoe sempre
    abraços
    leciley, manaus, am

  4. Mical disse:

    Que belo artigo, acho que conheço todos os protagonistas dessa crônica e enquanto lia ri muito, Dna. Josefina é muito fofa e tambem muito esperta, ela aborda as pessoas de tal forma que fica dificil dizer “hoje não quero”….e Isabel é uma pessoa muito temente a Deus, imagino o quanto deve ter refletido quando disse “hoje não” seu esposo Neto é mesmo como está descrito, eles são um casal abençoador que está sempre pensando no seu próximo por incrível que pareça os filhos deles levam esse legado, são filhos que aprenderam com seus pais a pensarem no próximo, MUITO BONITO ISSO!! Deus os abençoe!!!

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