Tristeza—Logo no Início do Ano

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Iniciei o ano de 2008 participando de um enterro. Era de Dona “N”, uma senhora de 55 anos, sogra de uma grande amiga minha—amiga que foi a primeira moça a se converter numa comunidade carente com a qual interagi durante quase doze anos. Agora não moro mais naquela área. Continuo me relacionando com as pessoas que se tornaram membros da nossa igreja, mas são raras as oportunidades que tenho para visitá-las. Poderei falar mais sobre elas numa futura postagem (escrevi e removi para não ser grande demais e para não tirar do foco). Agora quero me concentrar no enterro do qual acabo de regressar.

Sinto tristeza no meu coração. Há uma sensação de missão não realizada. No caminho para o cemitério, fiquei pensando sobre o que eu poderia dizer na situação hipotética de ser convidada para falar algo no velório. Veio-me à mente o lamento do nosso Senhor Jesus a respeito de Jerusalém—algo sobre querer abrigar todos os habitantes dela sob as suas asas e, ao mesmo tempo, ter a ciência de que eles não queriam ser guardados.

Minha primeira impressão foi que ele havia dito isto na sua entrada triunfal (de jumentinho) na cidade, mas uma procura na Bíblia nas paradas nos muitos sinais de trânsito ao longo do caminho não obteve o resultado almejado. Olhei “Jerusalém” e “chorar” na concordância e encontrei onde Jesus quando ia chegando, vendo a cidade, chorou… (Lucas 19.41). Foi aí que ele predisse a sua destruição (que aconteceria uns quarenta anos depois). Entretanto, não era esta a declaração que eu procurava.

Apenas depois, em casa, é que achei as palavras exatas que se aproximam mais com o que sinto com o falecimento de Dona “N”. Pois, até onde eu sei, ela partiu deste mundo sem ter recebido Jesus como seu Salvador, sem assumir o compromisso de servi-lo, sem querer para si a proteção oferecida por ele, ao contrario do que já fizeram vários dos seus filhos e alguns dos seus netos.

Jesus lamentou, numa das suas visitas à cidade—Jerusalém, Jerusalém! …. Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes!—Mateus 23.37. Sei que meus sentimentos são fracos e efêmeros comparados à profundidade do que Jesus sentiu a respeito daqueles moradores de Jerusalém que logo iriam rejeitar e crucificá-lo. Ainda assim, numa proporção bem menor do que o Divino Mestre, é claro, desejo de todo coração que todos os membros das famílias com quem tenho lidado neste bairro venham a se abrigar no Senhor Jesus, agora e para sempre. E compartilho do seu profundo lamento, quando vejo se esvair a oportunidade para qualquer uma destas pessoas, que se tornaram queridas, de se reconciliar com Deus.

Dona “N” vivia cercada por filhos e netos. Morava ao lado de um córrego, coberto pela prefeitura há alguns anos. Seus filhos conseguiram construir suas moradas no fundo do terreno e em cima da sua casa. Por anos, ela atendia o telefone que compartilhava com a família, com voz sempre alegre e disposta, e mandava buscar a pessoa com quem eu precisava falar.

Quando visitava uma ou outra delas, ou quando participava de aniversários, nascimentos ou tratamentos médicos, eu sempre parava para lhe dar um “oi”, pois tinha que passar pela casa dela—ou ao lado—para alcançar a moradia da maioria. Falávamos da saúde dela, e da do marido (sempre muito doente). Do clima, da família, dos seus projetos… Estávamos sempre rodeadas de gente, pois ela também era dona de um bar que ficava na frente da casa. Eu nunca sentia abertura para falar verbalmente de Deus, em uma conversa a dois… Deixava isto para seus parentes. Mas todo Natal, ela era incluída na lista de presentes e junto eu tentava colocar um cartãozinho meu tentando verbalizar o porquê da vinda de Jesus ao mundo, procurando criar abertura para que algum filho, nora ou neto viesse a falar mais. Tenho fotos dela na nossa casa em cultos de Natal, onde vários irmãos se reuniam para abençoar, alegrar e evangelizar…

Neste Natal, entretanto, não lhe enviei nada. Estou num processo, de certa forma natural – pois essa é a dinâmica da vida e a distância geográfica trabalha nesse sentido – de me incorporar às pessoas da minha nova vizinhança. Assim, desta vez, não refleti o amor de Deus diretamente a ela. Sei que ela apreciava a alegria dos netos ao receberem seus brinquedos, mas… Será que ela pensou—Dona Betty não se lembra mais de mim?

Esta “omissão” foi pecado da minha parte? Creio que não. Sei que não posso fazer tudo, presentear a todo mundo, alcançar a todos… Sei que nosso orçamento tem limites… Entretanto, eu me sentiria muito melhor agora se tivesse enviado para ela uma das lembrancinhas, que ainda tenho, que comprei para o Natal e que já estão esperando por uma nova oportunidade de fazer com que alguém se sinta amado…

Dona “N” era trabalhadora. Administrava a casa, a família, o bar… Cozinhava, lavava, limpava… E ainda costurava. Nunca vi alguém costurar mais rápido do que ela. Pegava costura de fábricas e recebia por peça—centavos—“uma miséria”, na minha opinião. Mas, suas mãos voavam e algum dinheiro entrava. E rendia… De vez em quando, ela remendava as nossas roupas e nunca me cobrava. Eu, entretanto, fazia questão de pagar-lhe porque queria que ela pudesse enxergar a bondade do meu Deus através de mim. Eu não podia parecer uma pessoa mesquinha ou aproveitadora. E eu também sabia o quanto ela se esforçava para cuidar da família sempre crescente e “voltante” (além dos filhos e netos que recorriam a ela nas horas do aperto, a “N” parecia atrair parentes, amigos e até desconhecidos com dificuldades. Sempre havia um lugarzinho, uma comidinha, em seu pedaço…). Muito generosa, até “adotou” uma menina, que agora tem 13 anos, quando resolveu que a sua mãe não tinha condições para cuidar dela.

Creio que a Dona “N” pensou que ainda teria muito tempo para escolher seguir Jesus. Ela achava tudo bom, tudo bonito, apreciava as modificações no comportamento e nos relacionamentos dos seus filhos e netos, admirava-se com o carinho dos crentes… Mas adiou, adiou, adiou…

Eu também pensei que teríamos muito mais dias e oportunidades para tentar ganhar a sua alma. Todos nós pensávamos isto. Mas seu coração não agüentou e, num dia de muito calor, numa casa cheia de gente para alimentar e cuidar, ela sofreu um infarto, chegando no hospital já sem vida.

O co-pastor da nossa igreja esteve na casa dela com mais alguns irmãos há poucos meses, a pedido da sua filha. Não sei o que falaram; o que ela pensou; o que ela entendeu… Uma amiga da igreja me falou, no enterro, que havia comentado com um dos netos da Dona “N”, que a gente nunca pode saber o que se passou na mente dela nos últimos momentos. Pois ela havia sido evangelizada, havia ouvido o convite de Jesus, para arrepender-se dos seus pecados e encontrar perdão e alento.

Sempre desconfiei que foi o apego ao bar que fez com que ela não tomasse nenhum passo em direção a uma modificação de vida. Ela sabia que um compromisso com Deus pediria transformações grandes no jeito de viver, na maneira de falar, e no seu modo de ganhar o pão de cada dia.

No cemitério, além de família e vizinhos (e freqüentadores do bar), havia uns vinte membros da minha igreja. São pessoas que também têm investido tempo, esforços, criatividade e recursos nas famílias e projetos de beneficência e evangelização do povo das ruas que cercam onde Dona “N” morava. Têm sido esforços esporádicos, mas muito preciosos, dando apoio ao empenho específico de alguns. Alguns a conheciam, outros estavam lá para apoiar seus filhos na sua hora de tristeza. O nosso pastor auxiliar falou—uma palavra evangelizadora como haviam pedido estes filhos.

Na volta, dei carona para algumas pessoas daquele bairro. Enquanto eu dirigia e conversava com a pessoa da frente, ouvia o murmúrio de vozes de duas mulheres—uma (amiga) tinha uns quarenta anos e a outra (filha da “N”), uns vinte-e-poucos. Eram irmãs em Cristo—a mais velha dando o ombro para a mais nova, que agora estava sem mãe, e sem a avó dos seus filhos. E fiquei pensando que só isto—esta possibilidade de amar e ser amado entre pessoas sem parentesco—já é uma bênção a mais que temos quando fazemos parte da família de Deus.

Re-encontrei várias pessoas que já conhecia, daquela rua, e fiquei sabendo detalhes das vidas delas. Alguns andando com Deus, outros não. Outros ainda hesitando… Abracei um dos filhos dela (já fez consertos muitas vezes na nossa casa) e reiterei que seria tão bom se ele algum dia viesse à igreja. E ele me olhou nos olhos e disse—“quero ir e quero levar meu pai”. Aí eu falei que não precisava ser a minha igreja—poderia ser alguma mais próxima. Ele me respondeu que achava que seria melhor ir onde estava o restante da família.

Fiquei contente. Não sei se ele irá. Vai ser difícil. Sem carro, com crianças, levando um senhor idoso com dificuldade na locomoção… O diabo parece estar ganhando esta parada na batalha por sua alma. E eu não sei como ajudar.

Mas quem sabe, talvez você possa… Se não for a eles, então a outra(s) pessoa(s). Aquelas que moram na sua rua ou no seu bairro; aquelas com quem convive no seu trabalho ou na sua escola; as que trabalham na sua casa ou no seu quintal; a criança que sempre “cuida” do seu carro na rua….

Colocando-se no lugar delas e agindo conforme aquilo que seria o seu próprio anseio na situação que elas estão enfrentando…Visitando, telefonando, observando, falando, ouvindo, convidando… Hospedando, evangelizando, aconselhando, orando, transportando (saindo um pouco do seu caminho)… Acudindo, compartilhando dos seus bens, ou do seu tempo, até abrindo mão de certos confortos…

Para que, um dia, você possa dar graças a Deus porque Ele lhe usou para contribuir para que a pessoa deitada no caixão na sua frente tivesse uma vida mais plena, e um assegurado e eterno futuro de felicidade.

Betty

2 Comentários a “Tristeza—Logo no Início do Ano”

  1. wagner disse:

    querida Betty,
    voce nao me conhece, mas seus textos tem me tocado muito.
    Que Deus te abencoe, e continue escrevendo assim, mensagem que falem ao coracao.

  2. Carlos Henrique F. Borges disse:

    Cara Betty,

    Estive um longo período em viagem e seus post’s me fizeram uma falta e tanto, enfim retornei e posso deleitar-me na palavra de Deus através de suas palavras.

    Em Cristo,
    Carlos Henrique.

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