“Estive Preso, e Vocês me Visitaram”

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—Gente, não vai dar! Isabel estava em meio a dez mulheres, de pé, no estacionamento, num sábado ensolarado. Alguns diáconos estavam colocando sacos volumosos e caixas na parte de trás da Kombi da igreja. Eram doações angariadas pela Sociedade Auxiliadora Feminina — roupas, objetos usados, sabonetes, pastas, xampus, restos de tecidos,… Tinha um teclado enorme esperando, sacos de pão e margarina, objetos pessoais… A motorista olhava o espaço que sobrava e balançava a cabeça de um lado para outro. —Realmente, não vai dar. Tem que ser dois carros!

As senhoras se entreolharam —Vamos comigo! Mikako, sempre dinâmica, tirou as chaves da bolsa e logo seu Uno estava cheio, com Isabel no banco de trás. Outras sete mulheres entraram na Kombi. Partiram, e os diáconos voltaram para o templo onde um simpósio de ética se realizava. Na cozinha, outro grupo de sócias da SAF preparava o lanche dos participantes desse evento.

Os dois carros seguiram em direção ao interior do Estado. Seu destino — um presídio feminino a uma hora e meia de distância. Enquanto viajavam, as senhoras colocaram os assuntos em dia. Todas haviam acordado cedo. Bateram bolos para trazer para o lanche do simpósio. Fizeram café e prepararam almoços para dois dias. Mais da metade saíra sem almoçar, algumas nem café haviam tomado.

Finalmente, chegaram. Isabel havia imaginado um prédio imponente, isolado num campo verde cheio de árvores, cercado por um alto muro. Surpreendeu-se ao ver que o presídio se encontrava dentro de uma delegacia de polícia, em meio às casas e lojas de uma rua comum. Do lado de fora, nem dava para saber da sua existência. Segurando o teclado nos braços, seguiu a representante da SAF local para dentro. Piscou repetidamente para tirar o arregalado dos olhos quando se viu num corredor estreito diante de uma grade amarela. Era uma jaula com tela de arame em cima e celas nos três outros lados. Estava cara a cara com as presidiárias que se pressionavam para a frente. Não havia salão de reuniões. Nem cadeiras.

Desviando o olhar, foi ao outro extremo e colocou o teclado numa mesinha. Procurou se distanciar daquela proximidade incômoda. –Fale com a gente também, tia. Que susto! A voz era grossa, de homem! Viu-se ao lado de uma outra cela, comprida e estreita. Isabel se lembrou de imagens de cadeias superlotadas vistas na televisão. A grade parecia um painel de rostos desencorpados—suas fisionomias refletindo curiosidade, deboche, revolta… Catorze homens sentados, ajoelhados e de pé se espremiam para ver o movimento. Eram “hóspedes” temporários da delegacia, esperando transferência para outras cadeias. –Pai, tenha misericórdia deles e permita que sejam logo levados para um lugar mais espaçoso.

Sem saber o que fazer, afastou-se para o outro lado do ambiente e ficou observando as cenas constrangedoras. Algumas senhoras estavam batendo papo com as mulheres. Outras chegaram para conversar com os homens. De repente, percebeu que uma se escondia atrás das outras. Estava chorando silenciosamente, condoída com a situação diante dela. O olhar de Isabel passou para a fisionomia séria de outra moça retraída. Ela estaria se lembrando daquilo que havia acontecido antes da sua conversão? Da transformação na sua vida, que a levou a corrigir uma situação na qual havia defraudado outra pessoa? Estaria dando graças a Deus por ter lhe permitido um desfecho contrário àquele experimentado pelas mulheres que lhes observavam?

O culto começou com oração. Isabel foi designada para levantar os cartazes com os cânticos. Muitas das detentas cantavam alto e alegremente, acompanhadas por D. Alba no teclado. Várias estavam com a Bíblia na mão. Aqui e ali, algumas permaneciam com um discman no ouvido ou conversavam baixinho nos cantos, visivelmente desprezando o culto. Mas eram poucas. A maioria estava diante da grade e estava gostando. Durante uma hora e meia, todas permaneceram em pé. Cantaram os cânticos da D. Alba e também as delas. Depois D. Alba falou com autoridade e sabedoria. Enquanto ela explicava, os olhos de Isabel percorriam a platéia. Sabia que algumas, convertidas há tempo, estavam aproveitando cada momento para crescer e fortalecer-se no Senhor. Queriam viver vidas transformadas, apesar da sua situação. —Pai, ainda não chorei. Será que sou insensível? Ou será porque sei que algumas delas se dizem crentes mas se recusam a abrir mão de pecados indizíveis? Sinto-me tão confusa e despreparada! Cantaram de novo. Oraram para encerrar. D. Adelaide, a coordenadora local do trabalho, conhecia a todas e foi dando avisos e instruções. Organizou a distribuição do pão e da margarina que trouxeram. X1. X2. X3 e X4. Até nos nomes das celas, iam sendo lembradas que estavam no xadrez!

Uma das senhoras se aproximou da D. Alba para conversar. Logo estavam abraçadas ao redor da grade. As outras visitantes também se achegaram, conversando, rindo, chorando, abraçando, orando. Isabel ficou observando, querendo e, ao mesmo tempo, não querendo participar. –”Senhor, já basta ter VISTO esta miséria. Tenho que OUVI-la também”?! Respirou fundo e colocou-se diante da grade. –Meu nome é Isabel. Qual o seu? Iniciou assim uma conversa com uma detenta de uns sessenta anos, presa há um, que contou que estava sendo preparada pelo pastor da igreja local para o batismo. Outras moças se aproximaram. A conversa até que fluía, mas Isabel não chegou a abraçar ninguém, nem a orar com elas. As mulheres sorriam para ela, sentindo e até perdoando o desconforto que tentava disfarçar.

O carcereiro deu o sinal. Era hora de ir embora. Ainda havia uma fila grande diante da D. Alba, querendo oração. Isabel ocupou-se em recolocar o teclado na caixa e guardar os cânticos. Ao sair, passou pelo delegado, vestido de terno e gravata. Parecia culto e educado. Não combinava com a decadência e a miséria que lhe cercavam. Dentro de pouco tempo, D. Alba também saiu. Isabel ficou imaginando se ela havia juntado as pessoas da fila e orado por todas de uma só vez.

Partiram. Eram quase seis horas da tarde. No caminho de volta, ela ficou sabendo mais da tremenda luta daquelas senhoras convertidas, em meio à imoralidade, crueldade e violência que ainda dominava o viver de muitas lá. Chegando na igreja, provaram o carinho da retaguarda que ficou. Sanduíches, bolo e refrigerantes estavam à sua espera. Finalmente, aquelas que não haviam tomado café e/ou almoçado estavam sendo alimentadas pelo carinho das irmãs que haviam assumido outras tarefas naquele dia. Todas trabalhando para Deus. Cada uma procurando os seus dons.

E Isabel ficou pensando. Por ser tão distante, a participação da sua SAF nesta obra só podia ser esporádica. Não podia haver compromisso, nem acompanhamento — era apenas um apoio a quem realmente estava fazendo o trabalho. E a sua própria cidade, cuja violência era descrita e lamentada diariamente nos jornais? E as delegacias e presídios em bairros mais próximos à sua igreja? Será que suas portas estavam mesmo fechadas ao evangelismo e ao discipulado? Será que alguém amado por um membro da igreja teria que ficar atrás das grades de um destes para que houvesse interesse? Realmente, elas poderiam entrar lá pela dor, ou pelo amor — um amor desprendido, paciente e sacrificial.

Havia crescido imensamente o respeito de Isabel pelas irmãs que estavam perseverando naquela obra. Sabia que nem todas eram chamadas para esta tarefa específica. Nem ela mesma, provavelmente. Mas sabia também que, naquele dia, havia estado com senhoras muito especiais que um dia iriam ver assentado o Filho do homem em sua glória, com todos os anjos, em seu trono na glória celestial. O que elas ouviriam lá? Venham, benditas de meu Pai! Recebam como herança o reino que lhes foi preparado desde a criação do mundo… Pois… estive preso e vocês me visitaram. — Mateus 25:31-36

—Elizabeth Zekveld Portela
Publicado na SAF em Revista, 2º Trimestre, 2001

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