Homenagem a um Cobrador-de-Ônibus Anônimo

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“O coração alegre aformoseia o rosto…”—Provérbios 15:13

Saí no sábado com minha filha para fazer compras na Rua José Paulino, aqui em São Paulo. Entretanto, uma das poucas desvantagens da nossa nova residência é que ficamos bem mais longe do metrô (que antigamente nós e nossos hóspedes usávamos sempre para chegar a esta área, como também à Rua 25 de Março, as rodoviárias, e muitos outros pontos.)

Assim sendo, resolvemos pegar o ônibus “Armênia” que passa na nossa porta. Minha filha já havia descoberto e feito isto em algumas ocasiões, mas para mim era a primeira vez que eu usava um ônibus em vários anos. Entramos com mais umas dez pessoas e fomos nos aproximando do cobrador. Era um senhor alto e moreno, bem magro, que conversava alegremente com cada um que fosse passando por ele. Quando chegou a nossa vez, minha filha perguntou se o ônibus de volta se chamava Pinheiros. Ele sorriu para ela e brincou—Você está com cara de quem vai para a José Paulino! Quando ela concordou, ele lhe explicou que a rota de volta realmente se chamava Pinheiros e que tinha duas paradas naquela área.

Passamos por ele e sentamos quase no fim do ônibus. Conversamos um pouco. Fiquei olhando a paisagem, tentando acompanhar a rota. Depois de certo tempo, comecei a prestar atenção ao povo ao redor do cobrador. Ele puxava assunto com cada um que passava, brincava, sorria (um sorriso escancarado)… Não era bonito no sentido preciso da palavra, pois a sua magreza era grande, mas tinha uma alegria sincera, espontânea, descontraída…. Nada forçada ou cínica. Até em repouso, visto de lado, as rugas perto dos olhos e ao redor da sua boca indicavam a tendência a sorrir… Os passageiros demoravam para sair da frente dele, especialmente quando não vinham pessoas atrás. Um senhor de bengala, já encurvado, ficou uns três minutos, contando algo para ele, agora sério e atencioso. Depois este se sentou, com um ar de contentamento. Quando não tinha ninguém na catraca, aqueles que estavam perto dele, sentados ou em pé, comentavam coisas. Os que saíam acenavam e ele lhes desejava felicidades ou sucesso conforme as pequenas conversas que haviam tido antes. Não dava para ouvir o que dizia, mas pareciam pequenas piadas ou brincadeiras porque os circunstantes não apenas sorriam mas, às vezes, riam alto com ele.

Quando nos aproximávamos do destino, ele levantou a voz e disse algo assim (eu não conseguia ouvir bem; minha filha que estava mais perto dele foi que entendeu melhor)— Senhoras e senhores, estamos chegando ao ponto … da famosa Rua José Paulino, que fica logo à sua esquerda. Senhoras, não se esqueçam de comprar presentes para seus maridos. Mas não comprem cintos, por favor. Nem meias. Cada vez que tenho um aniversário, minha família pega este ônibus e vem aqui e compra cintos. E meias. E cuecas! Não tem graça. Sejam criativas!

Ele se abria para fazer contato visual com cada um que ia descendo. Eu também sorri para ele e acenei discretamente. Não disse nada apesar de sentir uma vontade tremenda de parabenizá-lo por transformar o ambiente daquele ônibus em algo alegre e descontraído. Mas uma pequena freira, que desceu logo depois de mim, acertou em cheio quando falou, “Que Deus o abençoe; o senhor é uma simpatia!”

Ficamos pensando—“Será que ele é crente? Que maneira maravilhosa de ser transmissor de uma alegria que é divina!” Não tínhamos como saber pelo pouco que havíamos visto e ouvido…. Resolvemos anotar o número do coletivo, pensando em talvez enviar um e-mail para os donos da linha. Entretanto, havíamos esvaziado as bolsas com medo de possíveis ladrões. Tínhamos saído sem pente, sem caderninho e sem caneta… Tentamos gravar o número em nossas mentes. Tem alguma coisa a ver com a inversão dos números do ano de nascimento da minha filha. Se ela se lembrar, colocarei no fim deste blog.

Continuamos com o nosso “passeio”. Passamos por centenas de camelôs. Entramos em dezenas de lojas, cheias de gente, enquanto procurávamos roupas para mim, para Grace e para minha sogra (usando o nosso “olhômetro”—pois Mamãe não tem condições de nos acompanhar e o “M” de uma loja provou ser maior do que o “GG” de outra).

Como todos sabem, a atração primária por estas lojas vem dos preços bem mais acessíveis do que aqueles dos shoppings e das butiques espalhadas por nossa cidade. Ainda assim, o fator custo é apenas o primeiro entre vários que façam com que o freguês sinta vontade de primeiro entrar, depois ficar e finalmente comprar. Tem a vitrine, a oferta específica (no meu caso, só interessava lojas com manequim acima de 46), a organização na exposição das peças e, especialmente, as vendedoras (desta vez, eram todas mulheres). Com algumas destas, tivemos experiências toleráveis. Com outras, relativamente satisfatórias. Com umas poucas, excelentes. Encontramos moças tentando atender várias pessoas ao mesmo tempo sem conseguir cuidar bem de nenhuma delas. Passamos por algumas inexperientes que não sabiam entender ou encontrar o que queríamos. E outras que insistiam em mostrar coisas demais.

Juntando todos esses fatores, teve lojas nas quais nem quisemos entrar. Outras das quais saímos logo. Mas teve um estabelecimento em que a antipatia das vendedoras nos marcou. Especialmente de uma delas. Era uma loja de jeans na Rua Silva Pinto, transversal da José Paulino. Eu havia acabado de sair de um ponto de venda focado em senhoras do meu tamanho, bem satisfeita, com dois conjuntos para usar na nossa viagem para Manaus em novembro e aqui durante o verão. (Já sou freguesa desta loja. A vitrine e os displays não têm nada de especial, mas os preços são ótimos e as vendedoras são simpáticas e atenciosas. Improvisam um lugar para eu experimentar as roupas e ficam vasculhando as prateleiras e trazendo outras opções com boa vontade.)

A loja com as vendedoras antipáticas não tinha beleza. Com uma vitrine bem básica, a única atração inicial era mesmo o preço. A vendedora, de talvez uns 45 anos, interrompeu a conversa que estava tendo com uma outra vendedora (parecia ter uma certa superioridade hierárquica sobre ela) para vir me atender, sem olhar no meu rosto.

Bruscamente falou—O que a senhora quer ver? Pedi para ver as opções que tinham no meu tamanho. Mas ela não queria começar com o tamanho. Tinha que ser pelo estilo. E eu sei lá que estilo eu quero e muito menos como chamá-lo! Repeti o meu desejo.

A mulher puxou uma calça azul da prateleira e disse—Veja aqui uma calça básica.
Voltou-se para a outra e continuou contando, com tom de desprezo e mágoa, algum problema que estava tendo com alguém num curso que estava fazendo.
—Posso abrir o plástico?
—Pode. (Blá-blá-blá com a outra.)
—Creio que vai ser pequena. Tem maior?
Ela puxou outra e depositou-a no balcão.
Abri o plástico. Achei feia a mancha desbotada na frente.
—Posso ver outra neste mesmo tamanho?
—Não tem mais. Só tem 54. (Blá-blá-blá com a outra.)
—Que mais vocês têm? Que tal esta preta?
—Também só tem grande.
—E estas aqui, bordadas? Pode me mostrar algumas, neste mesmo número?
Ela pegou uma e enfiou-a na minha frente, dentro do plástico. (Blá-blá-blá com a outra.)
Abri o plástico e olhei. Estava com o bordado mal-feito.

Olhei para aquela senhora, bem na minha frente, mas quase de costas para mim, enquanto ainda reclamava e declamava com as feições contorcidas por rancor e descontentamento. Tive uma grande vontade de pegar no rosto dela com ambas as mãos, e fazê-la olhar para mim, como se faz com uma criança pequena. (Ou como as crianças pequenas fazem com a gente quando não lhe damos atenção). Aí também dei de costas. Desisti. Mordi minha língua e não disse nada.

Andei para o outro lado da loja no qual a Grace estava sozinha com o braço enfiado numa grande caixa, tendo já puxado dezenas de saias, procurando o tamanho que queria. Experimentou por cima da roupa—primeiro uma e depois outras enquanto eu dava meus palpites. A vendedora chat(ead)a se juntou a nós, com olhar sombrio, sem dizer nada. Esticou a mão e levou a saia escolhida para um cubículo onde uma outra pequena mulher sentava sozinha, sem se mexer, olhando fixamente para a parede na sua frente. Despertou do seu estupor e registrou a compra. Saímos, deixando para trás três seres humanos infelizes e incompetentes. Nesta aí, eu não entro mais!

Mas, em retrospecto, pensando no contraste entre o cobrador e a vendedora, o que é pior, muito pior, é que—apesar de estar trabalhando numa loja de calças jeans—desconfio que, pelo jeito que aquela mulher mal-humorada se vestia e (não) se enfeitava, se perguntada, ela diria que era crente. Penso que ela talvez pertença a alguma denominação que define e limita o que as senhoras podem e não podem fazer na sua aparência. Respeito isto. Mas, infelizmente, ela demonstrou ter se esquecido da segunda parte dos textos que interpretou assim – onde a real beleza da mulher se manifesta através do seu caráter e da sua personalidade. Pelo espírito manso e tranqüilo… Através do fruto do Espírito… Com boas obras… Praticando o bem… Sendo sal… Sendo luz…. Sendo uma bênção no local de trabalho… (Escrevi sobre isto em http://www.cronicasdocotidiano.com/?p=51 ).

E se você, por acaso, conhecer o cobrador do ônibus 8 2196 da Viação Gato Preto (Pinheiros-Armênia) que trabalhou na manhã do dia 06 de outubro de 2007 (ou outro funcionário parecido), imite aquela freira e diga-lhe—Que Deus o abençoe. O senhor é uma simpatia!

Betty

Addendum no dia 29 de outubro de 2007

Escrevi um e-mail para a Viação Gato Preto elegiando o cobrador e hoje recebi a seguinte resposta:

SRA BETTY

BOM DIA

RECEBEMOS SEU ELOGIO AO NOSSO COBRADOR SR. FRANCISCO …. O MESMO FOI NOTIFICADO, E FICOU MUITO SATISFEITO, POIS GOSTA MUITO DE TRABALHAR COMO COBRADOR, E TENTA FAZER DE SUA JORNADA DE TRABALHO A MAIS AGRADÁVEL POSSÍVEL.
A EMPRESA TAMBÉM AGRADECE PELA MANIFESTAÇÃO POR SUA PARTE, POIS ATRAVÉS DE ELOGIOS, RECLAMAÇÕES E CRÍTICAS, É QUE FICAMOS CIENTES DO COMPORTAMENTO DE NOSSOS FUNCIONÁRIOS NO DIA A DIA.

GRATOS

VIAÇÃO GATO PRETO LTDA

6 Comentários a “Homenagem a um Cobrador-de-Ônibus Anônimo”

  1. Grace Portela disse:

    Muito bom, mãe! Que nós tambem possamos trazer alegria e inspiração para todos que nos cercam.

  2. Carlos Henrique Ferreira Borges disse:

    Prezada Betty,

    Sou cunhado de Flávia Pereira (Igreja Presbiteriana do Guará II em Brasília), esposa do Presbítero Roberto, ou seja, somos da mesma família! Deus me abençoou e me presenteou com esta família e uma companheira ímpar: Fernanda, irmã de Flávia.

    Não tive o prazer de almoçar e estar mais tempo com a Senhora e Presbítero Solano devido a data comemorativa. Mas nos poucos momentos que encontrei com ambos e pelos comentários a respeito de vocês notei que têem sido bons “cobradores” pois têm apresentado um semblante muito feliz e bonito.

    Quero aqui registrar que foi impossível não entrar em seu blog após ouvir os comentários de Flávia que sempre trouxe suas palavras e histórias até nós. Só que após a conferência de Lindóia eu me propus a ler mais, então decidi eu mesmo entrar em seu blog para acompanhar estas crônicas do cotidiano e de cara tive o prazer de ler esta.

    Que Deus a abençoe – A Senhora é uma simpatia.

  3. betty disse:

    Prezado Carlos Henrique:
    Como foi bom acordar e encontrar o seu e-mail na minha caixa de correspondência apesar de ser grandemente imerecida. Aquela Marta dos blogs anteriores me persegue diariamente….

    A sua conclusão me emocionou e me fez lembrar do filme “Pay it Forward” (aqui conhecido como “A Corrente do Bem”) onde um menino passa uma bênção e procura incentivar os recebedores a passar outra adiante num projeto de escola.

    Gostamos muito da família da sua esposa. Foi muito bom, tanto para o coração quanto para o estômago, sermo incluídos no almoço do Dia dos Pais da família.

    Desejando-lhes um ótimo feriadão,
    A irmã no Senhor,
    Betty

  4. Mical disse:

    Ola Betty

    Que benção ler suas cronicas, espero que muitas pessoas estejam desfrutando desse dom que Deus lhe deu.
    Agradeço porque sou uma delas!!
    Um grande abraço
    Mical
    🙂

  5. leciley silva de souza disse:

    A alegria vem de Deus e Deus se alegra em dar alegria à aqueles que o temem.
    Esta deve ser a razão deste senhor trabalhar de maneira honrosa.

  6. Vanessa disse:

    Olá
    Também publiquei um texto sobre este cobrador e cito seu site. Se puder, dê uma olhada.
    http://teachervanessaprata.blogspot.com/2009/07/esse-cobrador-e-o-cara-seu-chico.html

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