Marta e Maria (e o Que Elas Têm a Ver Comigo?) Parte I

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Parte de uma Série:

  1. Marta e Maria (e o Que Elas Têm a Ver Comigo?) Parte I
  2. Marta e Maria (e o Que Elas Têm a Ver Comigo?) Parte II
  3. Marta e Maria (e o Que Elas Tem a Ver Comigo?) Parte III

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Pensei que minha primeira postagem, após este longo período de “férias”, seria sobre a nossa nova vida em conjunto com os pais do meu marido. Já anotei vários pensamentos, mas ainda não finalizei nenhum. Entretanto, algumas pessoas me pediram para completar as reflexões que me vieram à mente em Campos de Jordão sobre as irmãs Marta e Maria. Assim, procurei as anotações que fiz durante aqueles dias e vou ver se ainda consigo fazer com que façam sentido.

Voltemos então ao fim de junho de 2007 quando fomos passar três dias num casarão alugado na periferia daquela cidade. Estes pensamentos vão sair em três partes—a primeira vai relembrar aqueles dias (já terminei esta) e a segunda e terceira postagens falarão sobre o que o relato de Lucas 10 a respeito da esforçada (mas confusa) Marta está me ensinando.

Última semana de junho de 2007. Estamos em 15 pessoas. Meu marido e eu, minha única irmã Nellie com seu marido Chris, juntamente com uma filha de 21 e um filho de 17 anos (visitando dos EEUU), nosso filho mais velho com sua esposa (visitando de Bangladesh), outro filho nosso com sua esposa (de São Paulo mesmo), nossa filha. Além desses, nosso afilhado e três jovens americanos (da cidade da minha irmã e amigos dos nossos filhos e sobrinhos).

São sete horas da manhã. Acabo de abrir as cortinas de uma ampla sala. Vejo árvores floridas, pinheiros, um jardim bem elaborado, bosques e morros à distância…. Ouço passarinhos e, mais afastado, o clamor de centenas de gansos no lago da propriedade. Fico imaginando por que estão agitados—será que alguém está lhes alimentando, ou apenas passando na margem do lago?

Agora o silêncio reina novamente. Ninguém mais ainda se levantou nos seis quartos que rodeiam a sala. Meu marido está aproveitando para descansar um pouco mais. Na vida corrida dele, os fins-de-semana normalmente são mais cheios ainda do que seu dia-a-dia. Ouço a risada da minha irmã e percebo que ela e meu cunhado estão conversando no suíte deles. Daqui a pouco, 11 jovens estarão saindo das suas camas quentinhas para compartilhar três banheiros e depois tomar o café da manhã…

Mas a porta se abre. Percebo que estava enganada. Quatro dos jovens já se levantaram antes de mim, para ver o nascer do sol no ponto mais alto da Colônia de Férias onde estamos. Foram sentir e ver de perto a beleza da natureza que tanto me empolgou quando olhei pela janela há pouco. Fizeram um cultinho, sentados em cobertores no chão gelado enquanto o sol aparecia. Leram um salmo e cantaram, por iniciativa própria… Agora despejam os cobertores nos sofás e resolvem voltar para suas camas. Afinal, estão de férias… Eu tremo um pouco por dentro quando observo as cores claras que eles escolheram para sentar em cima da terra coberta de sereno, mas consigo não estragar o momento com uma censura. E não me levanto para verificar os danos.

Novamente, fico sozinha com meu livro e com minha Bíblia, sorvendo pequenos goles de uma xícara de café bem quentinho. Não fiz nada para o café da manhã, ainda, nem para o almoço… Não tirei as bolsas e os livros e os casacos da mesa… Nem coloquei nela pratos, talheres, copos, guardanapos… Não cortei frutas… Não adiantei nada para nada e para ninguém. Olho para mim mesma, acomodada numa poltrona bem confortável com as pernas para cima, enrolada num cobertor cor-de-rosa, agarrada a uma bolsa térmica… E estou em paz. O que foi que aconteceu? Quase nem me reconheço!…

Estou em Campos do Jordão “administrando” a casa que alugamos. Chegamos tarde da noite, depois de um dia movimentado e cheio de imprevistos. No fim, tudo deu certo, mas teve momentos nos quais eu quase me desesperei. Meu marido, que acabara de entrar em férias, e com quem contava para cumprir um monte de tarefas (sem, entretanto, ter lhe dito isto), desapareceu para um longo almoço ainda ligado às funções dele, juntamente com nosso cunhado. A maioria dos outros ocupantes dos quatro carros que vieram na caravana para cá também havia programações próprias. Assim, senti por demais o peso de juntar e embalar todas as coisas necessárias para a estadia confortável, agradável e econômica que imagino que todos almejam. Enquanto supervisionava a hospedagem e as refeições antes da partida no fim da tarde de ontem, tentava lembrar de tudo o que seria necessário para nossa higiene, limpeza, saúde, alimentação, confraternização, diversão, aquecimento… Muitas coisas já estavam em caixas e malas (afinal, tenho a tendência de ser uma mulher prevenida) mas outras só poderiam ser compradas ou colocadas no dia mesmo…

Na minha frente está a lareira, onde sentamos ontem a noite, procurando nos aquecer e onde as pessoas presentes jogavam conversa fora—num reencontro entre parentes, em meio a alguns “agregados” amigos. Vieram de três continentes—juntos por estes poucos dias, na providência e misericórdia de Deus. São duas gerações de irmãos e irmãs, cunhados e cunhadas, pais e filhos, tios e sobrinhos, primos e amigos—rindo, brincando, compartilhando—coisas alegres e coisas tristes, vitórias e dificuldades… Naquela mistura de tolice e sabedoria tão inerente a famílias que se esforçam para dar e receber carinho e apoio.

Continuo recriando o ambiente. Neste, meu marido está no canto, na sala pouco iluminada, dedilhando músicas num pequeno violão. Meu filho mais velho está sentado na mesma poltrona em que agora estou acomodada. Seu tio relaxa no sofá de lado. Seu primo também, e mais um irmão num outro divã perto de um abajur, mergulhado no livro que trouxe, mas com os ouvidos atentos às conversas que lhe cercam.

Vários jovens estão sentados num tapete que arrastaram para bem junto da lareira. Compartilham sobras dos lanches que trouxeram ou compraram no caminho. Bebem chocolate quente. O tio está perguntando sobre Bangladesh, o país em que mora meu filho. E ele está contando, animadamente. Eu também quero ouvir—quero saber dos detalhes que nunca entraram nas cartas. MAS eu não estou aí! Não estou sentada ali naquele quadro idílico da minha memória, ouvindo meu filho e aprendendo. Ouço pedaços aqui e ali, en passant, pois estou na cozinha, nos banheiros, nos quartos—guardando, ajeitando, arrumando, limpando, organizando… Eu e a minha irmã. Enquanto isto, as moças descem para o andar de baixo. Resolveram, por impulso, tingir os cabelos de uma delas—às 11 horas da noite! Elas se divertem procurando os objetos necessários entre os utensílios da casa desconhecida e nas bolsas, malas e caixas que trouxemos. Tesoura, panos que podem ser manchados, recipientes descartáveis, espelho, pente barato… Eu ajudo. Não as censuro abertamente. Mas no meu coração…! Será que não lhes ocorre que ainda tem mais trabalho para fazer?! Que não basta apenas trazer as coisas para dentro da casa! Custa-me entender que não são preguiçosas. Apenas não são donas de casa experientes como eu… E como Nellie, minha irmã.

Espere! Agora entro em cena. Puxo uma cadeira para perto do meu marido e também começo a ouvir as respostas do meu filho. Ouço não só ele, mas também os outros—num processo de (re)aproximação onde cada um conta um pouco, escuta um pouco, pergunta, responde, brinca, ri… Uns mais e outros menos. Percebo alguns sensíveis que tentam fazer os mais acanhados se sentirem à vontade ou apreciados. Tem aqueles que eu não conhecia, amigos dos meus filhos que estão no Brasil pela primeira vez—tentando compreender este interlúdio gelado na sua visita àquele que pensavam ser um “país tropical”.

Já passa de meia-noite. Meu marido continua tocando e alguns começam a cantar. As moças voltam, cheirando fortemente a produtos químicos. Buscam cobertores e se acomodam também. Logo 15 vozes harmonizam em cânticos e hinos, desde os tempos de faculdade dos dois casais mais velhos. Vêm os pedidos dos jovens. Solano passa o violão para nossa nora e eles continuam cantando—alguns em inglês, outros em português, conforme primeiro aprenderam—embalados por uma grande gratidão por aqueles momentos especiais, permitidos pelo Deus que nos une pelo sangue e/ou pela fé.

Como é que estou aí nestes momentos? Sentada, à vontade, no meio deles, entesourando lembranças em vez de que me sentindo “explorada” e resmungando porque “ninguém” ajuda? O trabalho está terminado? Não, não está. Foi no momento em que ouvia meu filho contando detalhes da sua vida, coisas que eu gostaria de saber, detalhes que eram importantes para eu compreender, mas que ele provavelmente nunca iria repetir—pelo menos daquele jeito—que me dei conta que eu poderia parar no meio daquela enorme lista de afazeres. Que muitos poderiam ser adiados. Alguns poderiam ser delegados para outra hora, outro dia… Enxerguei, de repente, num pensamento que não deve ter durado mais do que alguns segundos, que eu precisava ser menos Marta e mais Maria.

E por isso, a minha leitura bíblica nesta manhã foi em Lucas 10. Fiquei pensando sobre estas duas senhoras e sobre como meu Senhor Jesus reagiu à reclamação de Marta. Eu nunca entendi aquilo. Sempre algo em mim se rebelava contra aceitar a atitude de Maria como melhor do que a de Marta. Se Marta não fizesse o trabalho, como seria alimentado e hospedado aquele mundo de pessoas que Jesus havia trazido para dentro da casa dela? Mas agora, uma compreensão melhor vem para completar os lampejos de entendimento que surgiram na minha mente ontem à noite. Sinto-me feliz.

Mais tarde, compartilho os meus pensamentos com minha irmã. Juntas, enveredamos mais por esta nova percepção da “mente de Cristo” naquela história e nas nossas vidas.
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Agora estou relembrando o terceiro dia naquele lugar, distante dos nossos afazeres comuns, ainda com a possibilidade de curtir a família, a natureza, o clima, a cidade turística e suas atrações e guloseimas … Vejo três jovens cunhadas numa grande varanda ensolarada—bronzeando-se, pintando unhas e compartilhando sonhos e experiências. Provenientes de três culturas diferentes, estão revelando-se, conhecendo-se um pouco mais nestes poucos dias em que estarão juntas, relaxando num agradável ambiente, na mesma casa, cidade, país… Olho para pai e filho sentados lado a lado com seus laptops, sem acesso a Internet, mas aproveitando o tempo para limpar e organizar os arquivos enquanto mostram ou comentam os projetos e relacionamentos que compõem a sua vida profissional e espiritual.Meu cunhado está deitado de lado no sofá, lendo um livro de teologia. De vez em quando, compartilha algo com os presentes ou eles com ele. Todos estão à vontade, sem nenhuma necessidade de se afirmar, de impressionar… Chris levanta-se para atiçar a lenha na lareira (cuja manutenção assumiu desde o começo) e todos se agradam do calor que esta irradia, pois o sol no lado de fora não parece afetar a gelada temperatura da sala. Minha irmã está na mesa, com a Bíblia e vários livros espalhados ao seu redor, tentando se concentrar na preparação de estudos bíblicos que iniciarão em setembro sob a sua liderança… Está distante e não participa nas conversas.

Depois de um tempinho, Nellie deixa os livros de lado para vir me ajudar com um puzzle espalhado numa outra mesa. Sim, eu estou aí também. Ontem à noite meus filhos e meu afiliado chegaram com um pacote embrulhado de presente. Nas suas andanças pela cidade, haviam visto vários quebra-cabeças numa loja de brinquedos. Escolheram um com uma tartaruga-marinha para mim, lembrando-se dum período nas suas vidas em que sempre havia um puzzle sendo montado num cantinho da nossa sala. Quando chegamos em casa depois de deliciosos fondues de carne, queijo e frutas com chocolate, todos se postaram na minha frente para verem a minha reação enquanto desembrulhava o pacote. Fiquei contente. Parecia que Deus estava confirmando o meu propósito de parar de trabalhar, trabalhar, trabalhar para também desfrutar deste tempo de lazer e confraternização. Eles reviraram a casa para improvisar uma mesa numa área iluminada. Assim várias pessoas podem me ajudar a montá-lo ao mesmo tempo, sem atrapalhar as refeições na mesa grande.

Agora duas cabeças loiras se curvam diante das 500 peças—separando e montando as beiradas, depois uma cabeça aqui, patas ali, uma rocha submersa, tons de amarelo, verde, azul. Peças com apenas um buraquinho, outras com dois, ou três. Ou quatro. Uma não fiscaliza o progresso da outra pois não é uma competição para ver quem monta mais rapidamente. Surgem gritinhos de alegria quando uma descobre uma peça difícil. Conversam alegremente entre si e interagem com os grupinhos ao seu redor.

Ambas procuram palavras para descrever o ambiente. Gezellig em holandês, cozy em inglês, talvez aconchegante em português. Todos estão relaxando, desfrutando, sentindo o prazer do momento… Quando Nellie sai para sentar junto do marido, meu filho mais velho, aquele que por mais tempo acompanhou o gosto da mãe por esta atividade, toma o lugar da tia. E é ele que está comigo quando concluímos triunfantemente o quebra-cabeças, perto da meia-noite, apos muitas interrupções.

Isto não significa que ficamos preguiçando o tempo todo—eu e minha irmã e nossos maridos. Cuidamos de duas refeições por dia e atendemos aos dois pedidos do grupo—os “skinny pancakes” (panquecas americanas fininhas que o Tio Chris é craque em fazer), com bacon e lingüiça, maple syrup, mel e geléias e, para o almoço, uma enorme panela de “taco soup” (especialidade mexicana de Nellie da qual meus filhos aprenderam a gostar nas suas estadias no lar deles), servida com salgadinhos de milho, sabor queijo nacho. Os jovens ajudam, cortando, lavando, colocando e tirando as mesas, varrendo depois… Ninguém se cansa. Todo mundo se diverte. Está sendo uma oportunidade para conversas que normalmente não ocorreriam, quando eu ou a Nellie ficamos lado a lado com sobrinhas, noras ou hóspedes, lavando, enxugando ou arrumando. Surgem, assim, oportunidades para conhecer e sermos conhecidas um pouco mais, facilitando os relacionamentos nos dias seguintes.

Nem chego a entrar mais nos quartos ou banheiros dos outros. Não lavo roupas e deixo que eles mesmo limpem os sapatos com os quais andaram pela lama nas suas aventuras pelas trilhas do local. Em outras palavras, paro de me sentir vítima e de achar que alguém só pode ajudar se oferecer. Aprendo a pedir (ou sugerir) e os jovens acham bom porque (fora da vontade inata de ficar preguiçando mesmo), também não sabem bem como interagir com aquelas duas “máquinas” que já parecem ter tudo sob controle.

Quando está na hora de ir embora, todos ajudam. Tudo volta para as malas dos carros, a cozinha brilha e nem é preciso a minha última ronda pela casa, fiscalizando se tudo está no lugar, se ficou algo debaixo das camas ou nas gavetas, ou se há lixo deixado para trás.

Chego em casa sem aquela sensação de precisar “descansar das férias”, tão freqüente na vida de mães, avós e esposas nestas ocasiões. Afinal, parei de ser uma Marta—pelo menos por um período de três dias….

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Um Comentário a “Marta e Maria (e o Que Elas Têm a Ver Comigo?) Parte I”

  1. Grace Portela disse:

    Foi um tempo muito gostoso que passamos lá, mãe! Fico agradecida por tudo o que você fez e faz por nós!

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